Aldeia Ipavu ficou lotada durante o festival de Culturas Xinguanas
Durante três dias, as cores, danças e músicas dos 16 povos do Parque Indígena do Xingu tomaram conta da aldeia Kamaiurá da lagoa Ipavu, no Alto Xingu, para o I Festival de Culturas Xinguanas, evento organizado pelas lideranças indígenas para celebrar e refletir sobre os 50 anos desta que é a maior Terra Indígena (TI) do Estado de Mato Grosso e a primeira grande Terra Indígena demarcada no Brasil. A beleza das danças e dos cantos, bem como as músicas nas flautas gigantes tocadas por velhos e ensinadas aos jovens do Alto Xingu, provaram que o tempo não só não apagou como fortaleceu as tradições xinguanas.
Dança típica do Alto Xingu
A presença de crianças e adolescentes nas danças, como a Taquara e Jawari, e seus olhares atentos às apresentações tradicionais, como a luta Huka Huka, evidenciavam o envolvimento dos jovens com as tradições. “Queremos que nossos filhos e netos levem em frente a nossa cultura, continuem participando das festas. No Xingu, cada povo se pinta de uma maneira, tem rezas e danças diferentes, mas na luta para a preservação de nosso território e da nossa tradição somos todos iguais”, afirmou o cacique Afukaka Kuikuro.
Homens disputam o Huka Huka, luta típica
A arte xinguana esteve presente em cada detalhe do festival. Os vencedores das disputas de Huka Huka foram premiados com medalhas em madeira, colares de caramujo – considerados a jóia do alto Xingu – e troféus com o formato do Parque. Ao final de cada dia de festa, eram exibidos filmes feitos por cineastas indígenas tais como: A história do monstro Kátpy, dos cineastas Kisêdjê, e O Pescador. No domingo, todos se reuniram para o “grande moitará dos 50 anos”. O moitará é uma tradição de troca de objetos realizada por diversos povos indígenas. Na ocasião, os convidados puderam trocar diversos objetos - roupas, materiais para pesca - por artesanatos indígenas colares e cerâmicas.
Piracumã Yawalapiti coordena o “grande moitará dos 50 anos”
Passado e futuro do Xingu: reflexões
A preservação das culturas xinguanas e dos recursos naturais do território foram as principais questões abordadas nas rodas de conversas realizadas todas as tardes entre as lideranças indígenas. Cinquenta anos após a criação do Parque Indígena do Xingu (PIX), muita coisa mudou para as 16 etnias xinguanas.
A região do entorno cresceu, a produção agropecuária se desenvolveu e já alcançou os limites do território. Xinguanos relatam o aumento do desmatamento e já sentem as mudanças na natureza e no clima do parque. Caciques expuseram suas preocupações e questionamentos sobre o futuro do Xingu. “A gente tem essa terra, onde estamos sobrevivendo, vivendo em paz. Só que temos uma grande preocupação com os desmatamentos, queimadas e destruição nas beiras dos rios. Não sei se o homem branco também está preocupado com isso, eu acho que não, pois essas coisas continuam acontecendo”, disse o cacique Aritana Yawalapiti.
As lideranças também ressaltaram a importância de manter as tradições e estimularam o protagonismo dos jovens para continuar a luta na proteção dos limites do território. Alguns citaram a saída de jovens das aldeias para morar na cidade e declararam temer que essa tendência sinalize o abandono das tradições e da luta pela proteção do território no futuro.
O líder Kayapó Raoni participou de todas as discussões e apoiou as colocações dos xinguanos. “Nós temos que defender nossas terras. Quero pedir que os jovens continuem a luta de seus pais e fiquem aqui para continuar defendendo o Xingu e garantir o futuro de nossos netos.” Raoni citou ainda problemas como a construção da hidrelétrica de Belo Monte, afirmando que são ações em que o governo brasileiro deveria recuar, pois prejudicarão a todos os indígenas do Xingu. Ele defendeu a importância de se manter a união entre os povos para que projetos como esse de Belo Monte sejam barrados.
Raoni Txucarramãe discursa em roda de conversa sobre o futuro do Parque
Megaron Txucarramãe, sobrinho de Raoni, liderança indígena que morou no PIX durante sua adolescência e foi o primeiro administrador indígena do parque, também demonstrou seu envolvimento com os povos do Xingu. “As mesmas preocupações que vocês têm com os seus jovens aqui, nós também temos. Hoje estou relembrando tudo o que vivi no Xingu quando era jovem.” Megaron também citou a construção de estradas próximas ao Parque, que têm impacto direto nas comunidades indígenas, e apoiou a fala de Raoni a respeito da UHE de Belo Monte.
Kumaré Ikpeng, liderança indígena do povo Ikpeng e Ianuculá Kaiabi Suia, integrantes da comissão organizadora do evento, também chamaram a atenção dos participantes para a oportunidade de discutir temas de interesse de toda a comunidade xinguana. “Temos que nos unir para provar que esta obra de Belo Monte terá impactos negativos para nosso Rio Xingu e nossa sobrevivência”, afirmou. “Este é nosso território e o Rio Xingu faz parte dele. É inaceitável que nossos povos não tenham sido consultados no processo decisório de uma obra grande como esta”, completou Ianuculá.
Juventude e tradição xinguanas
A roda de conversas do segundo dia de evento foi formada por jovens lideranças. O professor Mutuá Kuikuro Mehinako destacou a importância de se passar a cultura dos mais velhos para os jovens. “Eu aprendi o português com o meu avô, pois queria saber como o homem branco chama as coisas… Mas eu também quis aprender nossas danças e músicas. Temos 15 rituais diferentes, que precisam ser passados para nossos filhos.” Mutuá também destacou o papel da escola indígena na manutenção das tradições. “Antes a escola era instrumento da igreja e dos missionários. Hoje podemos usar a escola para entender a riqueza da nossa cultura. O futuro do Xingu está em nossas mãos.”
Para Pikuruk Kaiabi, presidente da Associação Terra Indígena Xingu (Atix) e membro da comissão organizadora do evento, a preservação das línguas e dos costumes deve continuar sendo incentivada entre as novas gerações. “Eu quero ver todo mundo da minha aldeia e dos outros povos participando das festas. Nossa cultura e nossas línguas também precisam continuar presentes nas escolas indígenas.”
Na opinião de Rosana Gasparini, educadora do Instituto Socioambiental (ISA), uma das organizações apoiadoras do festival, inicialmente a escola indígena dividiu os espaços de aprendizagem dentro das sociedades xinguanas, mas continua em processo de construção. “Hoje, entende-se que a aprendizagem tradicional e o letramento devem caminhar juntos, visto que este também é importante para um diálogo equitativo com a sociedade não indígena. Mesmo assim, há muito por fazer pela consolidação da educação diferenciada.”
O professor Mutuá Kuikuro Mehinako na roda de conversa com jovens lideranças
A impressionante força das tradições xinguanas também é analisada por Cristina Velásquez, do ISA, que fez parte da comissão organizadora do evento. “Os paramentos tão perfeitamente elaborados, as pinturas e seus significados dão mostras de que a cultura xinguana está mais viva do que nunca, e que é dinâmica, permitindo a convivência pacífica entre as inovações tecnológicas, como o uso de internet e das redes sociais, com a vida na aldeia.”
E completou: “Esse evento possibilitou o reencontro entre lideranças e grupos de diferentes partes do Xingu, permitindo um momento de reflexão sobre o território. Os temas debatidos tanto na mesa das lideranças mais velhas quanto das mais jovens foram apreciados pelo público presente, demonstrando a importância das questões intergeracionais com as quais os xinguanos têm que lidar neste momento”. Alguns jovens xinguanos, como os Kisêdjê, mencionaram que nunca tinham visto apresentações dos povos alto xinguanos ao vivo, apenas em vídeos, por isso, esta foi uma oportunidade de troca cultural.
O uso da tecnologia pelos jovens indígenas também foi abordado no debate na reunião preparatória para o II Encontro de Jovens, realizada no sábado, dia 11, que contou com a presença e o apoio de representante do Fundo das Nações Unidas para as Crianças (Unicef) no Brasil e da Ecoar comunicação. Na ocasião, eles relembraram as deliberações do I Encontro de Jovens ocorridas no posto Pavuru, em 2008 e debateram a pertinência de se realizar um segundo encontro. Além disso, decidiram criar um espaço virtual no site do festival – www.xingu50anos.org – criado e patrocinado pela Ecoar comunicação, um dos apoiadores do evento, a fim de permitir o aprofundamento nos aspectos de organização do segundo encontro e também definir os temas relevantes como o futuro da educação no PIX e a relação dos jovens com questões do mundo contemporâneo. E, dessa forma, propiciar um espaço para troca de informações em geral sobre o Xingu, em um exemplo do uso das redes sociais e das novas mídias para o fortalecimento cultural. O próximo encontro de jovens será realizado em setembro, na aldeia do povo Kuikuro, deliberada pelos participantes deste encontro preparatório.
O site www.xingu50anos.org será mantido no ar, mesmo após o término do festival, para uso da Atix e demais associações indígenas do Xingu. Lá, o internauta pode encontrar informações sobre os povos do Xingu, curiosidades sobre este território bem como espaço para disponibilizar informações sobre a região e a realização do festival. A seção “Transparência financeira”, por exemplo, continuará disponível, com detalhes das despesas e investimentos feitos para o evento.
Saúde no Xingu
O atendimento médico no Parque Indígena do Xingu é considerado um dos melhores oferecidos em Terras Indígenas no País. Douglas Rodrigues, médico da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que trabalhou efetivamente no Parque por 30 anos, conta que diversas ações foram realizadas para melhorar as condições de saúde dos xinguanos. Hoje, várias doenças foram erradicadas e a população do território cresce acima da média nacional. “Enquanto a taxa de crescimento populacional brasileira está em 1,2% ao ano, no Xingu temos um crescimento de, em média, 3,5%. Este é um número surpreendente.”
Douglas explica que, no final dos anos 1990, o governo decidiu por uma política diferenciada de atendimento médico para os povos indígenas. No Xingu, a Unifesp foi responsável pela implantação desse novo modelo que tem, por base, quatro princípios. “O primeiro princípio é a regionalização do atendimento: nós temos pelo menos um monitor de saúde, que geralmente é um jovem indígena, em cada aldeia. O segundo é a participação da comunidade: sempre abrimos espaço para o diálogo. O terceiro é o trabalho conjunto com a medicina tradicional: sempre fiz as discussões de casos com os pajés, assim como faria com outro médico. O quarto e último princípio é o rigor médico: é preciso conhecer profundamente o que acontece por aqui para se garantir uma boa atuação.”
Parque x Território
A palavra “Parque” não agrada os xinguanos. Em diversas ocasiões, lideranças indígenas reivindicaram a mudança do nome para “Território Indígena do Xingu” uma vez que o nome parque traz a ideia de manter intacto o território e as pessoas que ali vivem. “Aqui não é um parque, é nosso território! Estamos no território indígena do Xingu”, disse Wayukuma Naruvôto, liderança indígena que está lutando para a demarcação da TI Pequizal do Naruvôto, ao sul do PIX. “Território é mais amplo que terra. Terra são fragmentos, território abrange tudo o que temos aqui, os rios, florestas, espaço aéreo, a diversidade educacional, cultural e linguística”, disse o professor Takap Pi-Yu Trumai Kaiabi, representante do povo Trumai.
A reivindicação para a mudança do nome está presente na carta final escrita pelas lideranças indígenas, que foi lida ao fim do evento.
Os irmãos Villas Bôas
A importância dos irmãos Villas Bôas para os xinguanos ficou evidente nas falas das lideranças. Eles foram mencionados diversas vezes pelos caciques mais velhos como as pessoas que tornaram possível a sobrevivência dos índios que hoje habitam o PIX. Orlando, Leonardo e Cláudio Villas Bôas ajudaram a consolidar o Parque Indígena do Xingu com o apoio do marechal Rondon, do antropólogo Darci Ribeiro, do médico sanitarista Noel Nutels e do Presidente Jânio Quadros. “Estamos comemorando este ano esta grande conquista que foi deixada para nós pelos irmãos Villas Bôas. Eles possibilitaram nossa vida aqui”, disse o cacique Kuiussi Suyá.
Vozes do Xingu
“Na época dos irmãos Villas Bôas, há 50 anos, nós éramos mudos para o homem branco, não sabíamos entender e falar com eles. Mesmo assim, conseguimos conquistar esse pedaço de terra que hoje se chama Parque Indígena do Xingu”.
“A população do Xingu está crescendo e eu estou muito contente com isso. Mas estou preocupado porque as cidades estão crescendo e o homem branco está chegando perto do Xingu. É preciso manter nossa cultura e nossa tradição e cuidar dos limites do parque”.
Raoni, liderança Kayapó.
“Este foi um evento muito importante para nós. Podemos reunir todas as grandes lideranças do Xingu e cada um contou um pouco da história desses 50 anos. Vamos usar todo esse material para fazer um filme e distribuir em todas as aldeias do Xingu”.
Kamikia Kisedje, cineasta indígena.
“Poder comemorar 50 anos do Xingu é motivo de grande festa para a gente. Temos sempre que dar valor para o território que temos hoje”.
Kawire Ikpeng, participante do Movimento Jovem Ikpeng (MJI)
“Os 50 anos, na verdade, são comemorados pelo branco devido a criação do parque, mas nós estamos aqui há muito mais tempo, há milhares de anos. Por isso, temos que comemorar todo o tempo até onde a memória de nossos antepassados consegue alcançar”.
Ianuculá Kaiabi Suiá, assistente de coordenação da Funai regional .
Realização
O I Festival de Culturas Xinguanas foi realizado pela Associação Terra Indígena Xingu (Atix), em parceria com as demais associações indígenas xinguanas, e contou com o apoio do Instituto de Pesquisa Etno Ambiental do Xingu (Ipeax), da coordenação regional-Xingu da Funai e do Instituto Socioambiental (ISA).
O evento também teve o apoio da Ecoar Comunicação, da O2 Filmes, da Funai, da Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (Usaid), da Unicef, da Rainforest da Noruega, da Anacê Design, da Rede de Cooperação Alternativa (RCA), da Prefeitura de Canarana, do Restaurante Chopinho e das empresas locais: Prisma, Constrular, Elétrica Padrão, Müller, Fica Fácil Construir (F.F.), Supermercado Três Passos, Pousada Alto Xingu, Pousada Rancho Xingu, Tasi Táxi Aéreo Sinopense Ltda e Wellington Caça e Pesca.
Também apoiaram: Tenente Coronel Mariano, da Superintendência de Assuntos Indígenas do Governo do Estado de Mato Grosso, e os atores José Mayer, Wagner Moura e Caio Blat.
créditos
Fernanda Bellei - Instituto Socioambiental
Cristina Velasquez, do ISA, |
http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=3368
Um comentário:
É com profunda tristeza que tomei conhecimento de que este comentário que faço agora é o primeiro. Como se mantém desinformada a nossa sociedade em relação àqueles que merecem toda atenção e respeito: os indígenas, verdadeiros donos deste solo pátrio. É preciso preservar os costumes e tradições indígenas que hoje, tem sido esquecidas até mesmo pelos próprios índios e sua descendências. Cabe ao MEC mostrar ao mundo as tradições e folclore indígenas para que todos venham a conhecer melhor estes povos. Eu admiro meus irmãos da selva e tenho por eles muito respeito.
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