sexta-feira, 27 de maio de 2011

MEU DESTINO É SER ONÇA

Por Kelvin dos Santos Falcão Klein.
Mestre em Literatura Comparada pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS,
Doutorando em Teoria Literária na
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

MUSSA, Alberto. Meu destino é ser onça.
Rio de Janeiro: Record, 2009.

A obra do escritor carioca Alberto Mussa ganhou repercussão por conta de suas feições orientais, mais especificamente pelos motivos árabes, presentes em livros como Elegbara e O enigma de Qaf. Mussa chegou inclusive a traduzir, diretamente do árabe, uma coletânea de poesia pré-islâmica denominada Os poemas suspensos. Sua produção mais recente, contudo, investe em outra frente, não menos complexa: os rituais cosmogônicos e antropofágicos da cultura indígena brasileira. Meu destino é ser onça, o livro em questão, é a restauração que Mussa realiza de um mito tupinambá.

Restauração é, aqui, palavra-chave. O termo é utilizado pelo autor para definir sua própria obra, e está presente já na capa do livro. Não se trata de uma versão porque é composta de muitas versões; também não se trata de uma criação pura e simples, uma vez que a ficcionalização (ou literalização) que realiza Mussa é baseada em ampla pesquisa etnográfica. Tampouco apresenta-se como um relatório, uma tese ou um documento histórico. Restauração confirma de forma precisa a indecidibilidade que marca o exercício de Mussa, a mescla de procedimentos e discursos, a heterogeneidade das presenças textuais e de suas imagens.

Meu destino é ser onça é composto por quatro partes:
a primeira delas é introdutória, um sumário que precisa questões sobre ortografia e nomenclatura tupis;
a segunda parte, que dá título ao livro, apresenta o mito tupinambá que explica a criação do mundo e dos seres que nele habitam, bem como a origem e o destino das várias divindades indígenas.
A terceira e quarta partes são teóricas: apresentam as fontes utilizadas por Mussa em sua restauração (nomes como Hans Staden, Padre Anchieta, Gândavo e outros) e uma detalhada metodologia de confrontação dos dados (que Mussa chama de “cálculo textual”), onde se explica os critérios de seleção das informações que formaram a versão restaurada.

Toda essa arquitetura está formada para dar sustentação a um texto eminentemente literário, pois o mito tupinambá é restaurado em um estilo que é, ao mesmo tempo, conciso e lírico, fantástico e esquemático, na tradição de epopéias míticas como o Gênesis, o Enuma Elish, o Popol Vuh e o Rig Veda. A epopéia tupinambá é performativa quando a palavra realiza e dá corpo ao ato (“moldou o Velho a primeira mulher, para que o Pajé do Mel povoasse a terra de homens melhores” (MUSSA, 2009, p. 33)), aliando a isso, também, um aspecto explicativo (“Por isso, porque as águas do temporal provocado por Tupã arrastaram consigo as cinzas das coisas queimadas, o mar é tão salgado e de paladar tão ruim” (MUSSA, 2009, p. 33)) e ético (“Assim é a vingança – o grande ensinamento de Maíra, que permite o acesso à terra-sem-mal” (MUSSA, 2009, p. 43)).

Ao ser observado por um viés literário, Meu destino é ser onça pode ser inserido em um campo muito específico da literatura brasileira, um segmento que congrega obras pautadas pela questão indígena e, principalmente, o questionamento de uma mitologia intrinsecamente brasileira. Meu destino é ser onça participa de uma família que reúne livros como Macunaíma, de Mario de Andrade, Quarup, de Antonio Callado, e Maíra, de Darcy Ribeiro. Esse contexto é marcado, segundo Alfredo Bosi, por um embate entre duas correntes opostas: “a centrípeta, de volta ao Brasil real, (…) do Euclides sertanejo, do Lobato rural e do Lima Barreto urbano”, e a segunda corrente, “centrífuga, o velho transoceanismo, que continuava selando a nossa condição de país periférico a valorizar fatalmente tudo o que chegava da Europa.” (BOSI, 1994, p. 305).

O livro de Mussa, entretanto, escapa desse cenário de resolução dialética que se costuma observar no modernismo e no pós-modernismo brasileiro. Obras como Macunaíma, Quarup ou Maíra, mais do que exercícios literários, apresentam um projeto de fundação nacional, cada qual a sua maneira e por meios enviesados. Meu destino é ser onça resgata essa linha sucessória da literatura brasileira (que poderíamos recuar até Gonçalves Dias e José de Alencar) para problematizá-la, para inserir pontos de questionamento no interior da tradição colonial brasileira, inserindo uma voz desconhecida até então: a voz tupinambá. Mussa diz que sentiu, ao iniciar seus estudos, “um impulso irresistível de incorporar a epopéia tupinambá à nossa cultura literária” (MUSSA, 2009, p. 26).

Esse esforço de resgate, empreendido por Mussa, é norteado pela afirmação que fecha a primeira parte do livro: “Há 15 mil anos somos brasileiros; e não sabemos nada do Brasil” (MUSSA, 2009, p. 22). O autor refere-se aqui à sobrevivência da matriz indígena na consolidação do processo miscigenatório brasileiro, ou seja, a conscientização de que os cinco séculos de idade do Brasil, cronologia baseada em uma tradição imperialista que não mais se sustenta, são a imagem de uma origem que deve ser revista.

É possível retirar daí uma das principais ideias do livro: a origem do Brasil está disseminada em muitos começos. Mussa oferece uma obra que poderíamos chamar de pós-fundacional, já que abandona as pretensões tradicionais de estabelecer marcos iniciais irrefutáveis – a verdade última sobre o descobrimento do Brasil e a cultura indígena. Por isso a compilação e arranjo de tantas fontes: os textos do francês André Thevet como ponto privilegiado de partida, seguidos pela confrontação com outros 15 cronistas, a maioria do século XVI.

Mussa informa que André Thevet foi um frade que acompanhou Villegagnon em sua tentativa de estabelecer uma colônia francesa no Brasil. O frade escreveu três obras sobre o Brasil, onde conviveu intensamente com os índios, aprendendo a língua tupi e observando os ritos antropofágicos. O texto de Thevet é rico em detalhes e abrange observações realizadas em diversas tribos indígenas do Brasil colonial, características que fazem do frade francês, segundo Mussa, o melhor dos cronistas do século XVI.
Comenta Mussa, em seu arrazoado sobre as fontes utilizadas, que o livro Cosmografia universal, publicado por André Thevet em 1575, é “simplesmente fundamental para o conhecimento do nosso passado – contém o mais extenso registro da mitologia tupinambá” (MUSSA, 2009, p. 78).
É do contato com a obra de Thevet que nasce Meu destino é ser onça. Mussa explica que, primeiro, leu o ensaio A religião dos tupinambás, do antropólogo Alfred Métraux, um início de aproximação ao pensamento indígena. Contudo, o grande salto ocorreu com a leitura do apêndice do ensaio de Métraux: lá Mussa encontrou fragmentos de escritos do frade Thevet, trechos de histórias narradas pelos próprios índios ao religioso francês, tradição oral que era, pela primeira vez, posta no papel. Thevet, muito sagazmente, observou que as personagens dos episódios que lhe eram relatados guardavam relações de parentesco, e que essas conexões davam unidade aos diversos relatos cosmogônicos recolhidos.

O que Thevet não percebeu, tarefa que Mussa tomou para si, era que no fundo desses relatos estava um manancial mítico e simbólico que conferia especificidade ao contexto cultural indígena no Brasil. Thevet reuniu uma tradição oral à maneira da Odisséia de Homero, uma epopéia tupinambá que, dada sua riqueza, superava as simples fronteiras locais. Nesse ponto, Mussa observa que “faltava essencialmente devolver à narrativa sua literariedade” (MUSSA, 2009, p. 26). E continua: “Por isso – porque quis fazer literatura – não me limitei a traduzir e anotar a versão francesa do frade.” (MUSSA, 2009, p. 27). Mussa desarquivou Thevet, leu, glosou e editou seu texto, e, no confronto com visões complementares, construiu Meu destino é ser onça.

É importante observar que Mussa incorpora ao seu livro os trechos que utilizou. Ou seja, deixa armado todo o procedimento de leitura que construiu, para que seus leitores participem da restauração do mito enquanto observam a literariedade operando sobre as fontes. O esquema de Mussa funciona da seguinte forma: primeiro, informações biográficas e cronológicas (“Anchieta chegou ao Brasil em 1553 e aqui morreu em 1597. Sua importância como personagem histórica dispensa comentário, bastando lembrar que foi o fundador da cidade de São Paulo” (MUSSA, 2009, p. 135)) que situam, em poucos parágrafos, os cronistas utilizados; em seguida, citações literais que trouxeram informações importantes para a restauração do mito tupinambá (escreve Anchieta, citado por Mussa:
“É coisa sabida e pela boca de todos corre que há certos demônios a que os brasis chamam curupira, que acometem aos índios muitas vezes no mato, dão-lhes açoites, machucam-nos e matam-nos” (MUSSA, 2009, p. 136)).
O foco de Mussa, ao recolher trechos de tantas fontes, está sempre voltado para a questão da antropofagia, prática definida como fundamental para uma imersão na cultura indígena. O ritual antropofágico dizia respeito ao modo como os índios se relacionavam uns com os outros, com a geografia, os deuses, a guerra e o pós-vida. Ou seja, um evento que congregava todos os aspectos da vida tribal, interferindo na percepção do tempo e do espaço, além de organizar a dinâmica da vida social e das jornadas bélicas.

O título do livro se explica nesse caminho: o destino do tupinambá é ser canibal, carnívoro e caçador como a onça, e esse horizonte só faz sentido quando observado em suas ressonâncias míticas e religiosas. É preciso embarcar em uma perspectiva que dê conta da multiplicidade dos significantes míticos envolvidos na epopéia tupinambá. O mito dos tupinambás é, segundo Mussa, uma exaltação aos valores canibais. E isso acontece porque apenas com a prática canibal o índio poderia alcançar, depois de sua morte, a terra-sem-mal: terra perfeita, como era antes das grandes catástrofes, causadas pelas maldades dos próprios homens.. A antropofagia conferia valor ao guerreiro nas provas da morte, e a prática deveria ser urgente, já que os índios acreditavam que o mundo poderia ser aniquilado a qualquer momento.

Mas o canibalismo tupinambá não é só isso, afirma Mussa: “o sistema tem um objetivo muito mais alto: o de eliminar do mundo o conceito de mal” (MUSSA, 2009, p. 73). Mussa argumenta que, no mundo indígena antropófago, toda violência equivalia a uma espécie de benção, pois o ritual de matar e comer torna a vingança um evento de equilíbrio e harmonização, possibilitando, para ambos os lados, a redenção final e a vida eterna – lembrando sempre que, ao ser capturado, o inimigo era integrado à tribo, recebendo inclusive uma esposa (podendo ter filhos, que seriam também executados quando entrassem em idade de batalha), e preparado durante meses para ser, enfim, comido.

O livro de Mussa termina com um resumo, construído em tópicos, do
ritual antropofágico, da captura do inimigo até sua morte e assimilação.

Este esquema reúne e condensa as informações encontradas em André Thevet e também nos escritos do padre português Fernão Cardim, que chegou ao Brasil em 1583. Gabriel Soares, Abbeville, Hans Staden, Léry e Gândavo aparecem como fontes complementares. São 37 tópicos, que funcionam como suplemento da narrativa mítica, apresentando a formulação prática e ritualística de toda a inventividade que está presente na cosmogonia indígena. Ou seja, a epopéia lança as bases narrativas e mitológicas daquilo que, na prática, será encontrado no ritual antropofágico. Mussa deixa bem claro que não se trata de uma refeição como outra qualquer, muito pelo contrário. O ato de comer o inimigo está carregado de significação, e esse sentido é encontrado na tradição oral tupinambá, agora restaurada em Meu destino é ser onça.

Referências
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
MUSSA, Alberto. Meu destino é ser onça. Rio de Janeiro: Record, 2009.
http://www.dacex.ct.utfpr.edu.br/11_kelvin_klein.htm

Site da Editora:
http://www.record.com.br/default.asp

Encontrado nas seguintes livrarias
Cultura
Americanas
Travessa
Resposta
Submarino
Portal de Livros
Saraiva
Estante Virtual

Um comentário:

Profª Míriam Bio disse...

É o Blog mais bonito que já visitei. Parabéns e que Deus abençoe seu propósito e sua vida.
Míriam

.