terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

NAMBIKWARA III

Grupos e critérios de pertencimento

Segundo Lévi-Strauss (1948) os critérios que definem uma pessoa como membro de um determinado grupo são maleáveis e, muitas vezes, atendem a interesses políticos, o que torna impossível definir com precisão o grupo ao qual uma pessoa pertence.

Price (1972) afirmou a esse respeito que, na maioria dos casos, o local de nascimento é usado para definir o pertencimento ao grupo e que o critério da patrilinearidade também pode ser evocado, embora haja sempre uma grande margem para a manobra individual. Este autor sugere que, embora os grupos Nambiquara não se reconheçam como unidades políticas, o pertencimento ao grupo pode ser definido pela aplicação do termo anusu (“gente”, de acordo com a língua Nambiquara do sul).

Comparando os dados de Price e de Fiorini (1997) sobre os grupos nambiquara do sul com os meus próprios dados sobre os Mamaindê (Nambiquara do norte), notei uma variação no uso deste termo. Os grupos do sul do Vale do Guaporé, estudados por Fiorini, classificam como anusu apenas os membros do mesmo grupo local. Já os grupos do cerrado, estudados por Price, também consideram anusu os membros de grupos aparentados (i.e. todos aqueles que mantém entre si relações de aliança por casamento).

Sob o termo nagayandu (“gente”), os Mamaindê classificam todos os membros do grupo local, mas, quando usado em oposição aos “brancos” (kayaugidu), o termo pode incluir também todos os grupos nambiquara e, em determinados contextos, outros grupos indígenas da região como os Pareci e os Cinta-Larga. Além disso, alguns animais podem ser chamados de “gente” (nagayandu). Geralmente, afirmações desse tipo referem-se ao passado mítico, quando os animais eram gente, ou ao fato de os espíritos dos mortos se transformarem em animais.

A extensão do uso dos termos traduzidos com “gente” indica, assim, que os limites da humanidade dependem mais do contexto do que de um significado anterior ou intrínseco ao termo. O mesmo pode ser dito dos etnônimos atribuídos aos grupos nambiquara; longe de indicarem uma identidade grupal previamente definida, esses termos apontam para a impossibilidade de definir o próprio grupo sem recorrer ao ponto de vista dos outros. Podemos dizer então que, neste contexto etnográfico, os limites da humanidade e dos grupos sociais dependem fundamentalmente de uma relação.

Habitações, aldeias e roças

Diferentes tipos de habitação foram encontrados nas aldeias localizadas em cada uma das três regiões que compõem o território Nambiquara. Entre os grupos do norte, as casas eram cônicas; na região do Guaporé, as casas eram grandes e compridas e na região do Vale do Juruena, eram pequenas e semi-esféricas.

Rondon (1922) descreveu a primeira aldeia nambiquara que visitou, em 1907, na região do vale do Juruena. Segundo ele, a aldeia era composta por uma casa grande e outras duas menores, ambas com formato semi-esférico e cobertas de palha. Em uma das casas menores, ele encontrou flautas de taquara semelhantes a dos Pareci. De acordo com a sua descrição, a aldeia tinha o formato circular com o terreiro em frente às casas “irrepreensivelmente limpo”.

Roquette-Pinto esteve, em 1912, com os Nambiquara da Serra do Norte, região mais elevada ao norte da Chapada dos Parecis. Segundo ele, “as aldeias dos índios da Serra do Norte, em geral, são construídas no alto de pequenas colinas, longe dos cursos d’água. Algumas distam mais de um quilômetro do rio ou ribeirão mais próximo. (...) A aldeia é construída numa grande praça, de cinqüenta metros de diâmetro; o chão limpo de mato, arrancado à mão, é entretido sempre assim pelo piso dos moradores (...) A marcha circular, que faz o chão da aldeia no meio do cerrado, toma a feição de uma estrela, mercê dos trilhos que partem de sua circunferência” (1975). Acrescenta que as aldeias nambiquara têm, em geral, duas casas, uma em frente à outra, separadas pela praça central e são, geralmente, estabelecidas no cerrado, em uma área mais elevada.

Embora vivam em uma região de floresta, os Mamaindê estabelecem suas aldeias em áreas mais elevadas que possuem o solo arenoso e a vegetação típica do cerrado. O termo halodu (campo, cerrado ou espaço aberto), usado pelos Mamaindê para designar a aldeia, indica que o campo ou cerrado é considerado o local apropriado para a localização de uma aldeia.

Atualmente, os Mamaindê habitam em uma aldeia situada no alto de um planalto que é designada yu’kotndu (“pendurada na beira/boca” [da serra]). As roças são cultivadas na parte de baixo da serra, em uma área de floresta densa entre os rios Pardo e Cabixi, onde o solo é mais fértil.

As roças devem ser, preferencialmente, abertas em um local próximo à aldeia. No entanto, é também comum haver roças situadas a duas ou três horas de caminhada da aldeia. Neste caso, a família responsável por ela costuma construir abrigos temporários, onde permanece pelo período de plantio e, depois, no período da colheita, evitando, assim, ter que voltar para a aldeia todos os dias.

No pátio central da aldeia, situava-se a casa das flautas, local destinado a guardar estes instrumentos feitos de taquara, cuja visão é interditada às mulheres. Atualmente, as aldeias mamaindê e negarotê não possuem mais a casa das flautas. Os Mamaindê dizem que deixaram de guardar as flautas na aldeia desde que o contato com os brancos se intensificou. Segundo eles, as flautas são atualmente confeccionadas e guardadas no mato, longe da vista das mulheres.

De acordo com os dados de David Price, a praça da aldeia é o centro da vida pública, onde os rituais são realizados e também onde os mortos são enterrados. O principal critério que permite definir um local como sendo uma “aldeia” é o fato de lá haver mortos enterrados. Assim, os sítios de muitas aldeias antigas costumam ser lembrados pelos Nambiquara como locais em que residem os seus ancestrais. É possível dizer, neste sentido, que as aldeias nambiquara são, sobretudo, aldeias dos mortos.

Os Mamaindê contam que, antigamente, permaneciam muito tempo em acampamentos de roça. Esses locais também podiam ser considerados aldeias quando havia mortos enterrados lá. Quando uma pessoa morria longe da aldeia e não era possível levar o seu corpo para ser enterrado perto da casa de seus parentes, escolhia-se um acampamento de roça ou um lugar onde se poderia fazer uma nova roça. Deste modo, o local de enterro dos mortos poderia se tornar, futuramente, um novo local de residência.

De um modo geral, as aldeias são os locais em que os grupos nambiquara permanecem grande parte do ano. A localização de uma aldeia costumava mudar, em média, a cada 10 ou 12 anos. Na época do plantio e da colheita, as famílias podiam deslocar-se para acampamentos nas roças, mudando a composição residencial da aldeia, mas após este período retornavam para o mesmo local.

Durante as expedições de caça, ou em viagens para visitar parentes distantes, os Nambiquara também costumavam permanecer em habitações temporárias. Lévi-Strauss esteve com os Nambiquara em acampamentos temporários ao longo da linha telegráfica construída pela Comissão Rondon, e afirmou que os Nambiquara eram semi-nômades que passavam a maior parte do tempo em deslocamento, reunindo-se em aldeias maiores apenas no período chuvoso. Posteriormente, Paul Aspelin e David Price questionaram a classificação dos Nambiquara como semi-nômades, apontando para a importância da atividade agrícola e da vida sedentária nas aldeias, o que suscitou um debate sobre os padrões de mobilidade dos Nambiquara (veja Aspelin 1976, 1978; Price, 1978; Lévi-Strauss, 1976, 1978).

http://pib.socioambiental.org/pt/povo/nambikwara/1678

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