Ao início do século XVIII, depois da descoberta do ouro na então província de Goiás, a chegada de mineradores, bandeirantes, colonos e missionários pressionou as populações indígenas locais, provocando conflitos entre elas e os novos habitantes. As populações nativas reagiram de diferentes modos às incursões dos forasteiros. Algumas recorreram à prática de ataques repentinos e à guerra; outras, ao estabelecimento na área ou à migração. Na segunda metade daquele século, vários grupos, incluindo alguns identificados como “xavante”, estiveram assentados em aldeamentos patrocinados pelo governo, onde sofreram os efeitos devastadores de doenças epidêmicas.
Depois, em algum momento do final do século XVIII ou do início do XIX, os antepassados dos Xavante cruzaram o rio Araguaia. Esse deslocamento rumo a oeste separou definitivamente os Xavante dos Xerente, que permaneceram na margem leste do rio. Velhos xavante contemporâneos contam histórias dramáticas sobre a separação de sua gente em relação aos Xerente. Numa das versões, um enorme boto ergue-se no meio do Araguaia, tornando o grande rio intransponível e amedrontando os demais “parentes” que não o haviam atravessado. Outra versão dá conta de um grande número de botos encarregando-se de transportar os Xavante pelas agitadas águas do Araguaia. Em ambas as histórias, os que permaneceram na margem oriental do rio foram abandonados para sempre. Tratam-se, segundos os velhos, dos ancestrais do povo que hoje conhecemos por Xerente.
Uma vez cruzado o Araguaia, os Xavante se estabeleceram na região da Serra do Roncador, no que agora é o estado do Mato Grosso. Seu povoado original, uma comunidade conhecida como Tsõrepre, passou por várias cisões ao longo do tempo. Durante o século XIX e a primeira metade do XX, distintos grupos migraram mais para oeste, fosse margeando o Rio das Mortes, fosse em direção às áreas do rio Suiá-Missu e das cabeceiras do Rio Kuluene. Até a terceira década do século XX, todos eles viveram relativamente livres das perturbações provocadas por membros da sociedade nacional. Quando o governo Vargas começou sua famosa “Marcha para o Oeste”, as pressões externas voltaram a agravar as condições de vida xavante. Associada à campanha estatal em prol da abertura do interior do país ao processo de colonização, houve uma série de propagandas em revistas e jornais de circulação nacional que retratou os Xavante como símbolo do “bom selvagem” brasileiro. Por conseguinte, eles foram os primeiros indígenas do país a tornarem-se famosos por obra dos meios de comunicação de massa que, patrocinados pelo Estado, representaram os Xavante como os bravos e heróicos primitivos do país que, depois de ‘pacificados’ – e marcando passo com a “marcha do progresso” que acompanhava o avanço da nação rumo a oeste –, engrandecer-se-iam com o abraço da sociedade nacional. Na retórica estatal, o “amansamento” dos índios da região (personificados nos Xavante) figurava metaforicamente como a domesticação do agreste interior brasileiro. No fim das contas, de acordo com a narrativa estatal, as qualidades heróicas primordiais dos Xavante contribuiriam para o caráter nacional, e eles seriam incorporados à estrutura social e à economia produtiva do país.
Para documentar os heróicos eventos da missão domesticadora, com finalidades de divulgação e publicidade, fotógrafos e jornalistas foram designados a compor a equipe do SPI (Serviço de Proteção aos Índios) que estava encarregada de “pacificar” os hostis Xavante. Dois padres católicos salesianos empenhados em fazer contato com os Xavante (1932) e uma ‘equipe de pacificação’ do SPI chefiada pro Pimentel Barbosa (1941) foram mortos por grupos locais xavante descontentes com invasão de seu território. Apoiando-se nesses fatos, a mídia destacava a imponente bravura dos Xavante e sua feroz resistência a forasteiros. Em 1946, quando a equipe do SPI, liderada por Francisco Meirelles, finalmente atingiu sua meta, trocando com êxito, bens com representantes do grupo xavante liderado por Apöena, a celebração por parte da mídia e do Estado foi intensa.
A publicidade em torno da “pacificação dos Xavante” alçou Meirelles e Apöena quase à condição de heróis nacionais. Como resultado da promoção midiática, imagens positivas dos Xavante e de suas nobres qualidades fizeram-se continuamente presentes na memória nacional por décadas após esse primeiro contato pacífico.
No entanto, foi apenas em meados dos anos 1960 que o “contato” xavante completou-se. Àquela altura, todos os grupos xavante já haviam estabelecido ou admitido relações pacíficas com representantes da sociedade nacional, mas os modos e os momentos em que o fizeram foram distintos. Esgotados pelas doenças, pela fome e pelos conflitos com colonos, alguns grupos dirigiram-se a postos do SPI; outros, buscaram refúgio em missões salesianas ou protestantes.
À medida que os grupos xavante cediam às pressões da expansão nacional, os territórios que lhes haviam por mais de 100 anos garantido a reprodução de seu modo de vida tradicional, tornavam-se acessíveis à colonização e, especialmente, à produção capitalista. À medida que os grupos xavante cediam às pressões da expansão nacional, os territórios que lhes haviam por mais de 100 anos garantido a reprodução de seu modo de vida tradicional, tornavam-se acessíveis à colonização e, especialmente, à produção capitalista.
Nos anos 1960 e 70, por incentivos fiscais do governo, destinados a fomentar a colonização e o desenvolvimento econômico em larga escala da região, colonos e fazendeiros chegaram por lá. O acesso a porções do território tradicional do povo Xavante envolveu, muitas vezes, fraudes. Sabe-se de casos em que, para disponibilizar terras à produção capitalista, autoridades alteraram mapas e atestaram a ausência de habitantes indígenas. Imensas extensões de monocultivo agrícola – de início, sobretudo arroz de terras altas; mais recentemente, soja – foram implementadas pelos fazendeiros, que também desmataram vastas áreas de cerrado com vistas à criação de gado.
Intensas lutas pela recuperação de terras ancestrais, bem como esforços para demarcar as terras que ainda continuavam sob seus domínios – em alguns casos, solicitando o aumento dos seus limites –, caracterizaram o final da década de 1970 e o início da de 80. A partir de meados dos anos 70, muitas das famílias que haviam deixado as terras habitadas no período pré-contato para buscar refúgio em missões ou postos do SPI começaram a retornar para seus territórios de origem. Ao fazê-lo, encontraram as áreas ocupadas por colonos ou por fazendeiros dedicados ao agronegócio de larga-escala. Em alguns lugares, os colonizadores não-índios haviam estabelecido cidades inteiras. Quando líderes xavante se puseram a reivindicar direitos sobre suas terras, a violência, concreta ou como ameaça, irrompeu em muitas localidades.
Ao pressionar fortemente o Estado com vistas à demarcação das terras, os Xavante enfrentaram adversários de peso – fazendeiros com grande poder político e imensas propriedades. Uma delas era a Agropecuária Suiá-Missu, que desalojou os Xavante da área a que chamam Marãiwatsede. Nos anos 1970, a corporação detinha mais de 1,5 milhão de hectares, extensão que lhe distinguia como um dos maiores latifúndios do Brasil. Outra gigante, instalada na área entre os rios Kuluene e Couto Magalhães, era a Fazenda Xavantina, cuja infra-estrutura incluía mais de 300 km de estradas internas e 400 de cercas. Nas épocas de atividade intensiva, chegava a empregar 200 trabalhadores, que viviam com suas famílias ali mesmo. Possuía 10.000 cabeças de gado e produzia uma média de 16.000 sacas de arroz por colheita.
Os Xavante são astuciosos na política e perseverantes na luta por seus direitos. Durante os últimos anos da década de 70 e o começo da de 80, desenvolveram táticas eficazes para exercer pressão sobre o Estado, visando à obtenção de terras e de assistência em outros domínios.
Nesse rumo, chegaram a lograr o reconhecimento de direitos sobre porções de terra relativamente extensas. Ao final de 1981, seis terras xavante haviam sido demarcados: Areões, Pimentel Barbosa, São Marcos, Sangradouro, Marechal Rondon e Parabubure. Apesar dessas conquistas, os conflitos persistiram e, em algumas áreas, continuam ainda hoje. Nos anos 90, os Xavante tiveram êxito em pleitos por ampliação de várias áreas, e após longa batalha, conseguiram a demarcação e homologação da terra Marawãitsede, na região do Suiá-Missu. Apesar do reconhecimento oficial ter cumprido todas as etapas, grande parte dessa terra indígena continua ocupada por centenas de não-índios. Só um pequeno grupo xavante, a duras penas, ocupa uma pequena extensão de Marawãitsede.
Economia e meio ambiente
Os Xavante habitam a zona central do cerrado brasileiro em uma complexa eco-zona que combina cerrado e mata de galeria. Trata-se de uma região marcada por duas estações bastante definidas: a época da seca denominada regionalmente como “inverno” – que compreende os meses de abril a outubro - e a época das chuvas (“verão”), compreendendo os demais meses do ano. O cultivo agrícola, sobretudo de milho (o alimento de maior destaque em termos cerimoniais e sócio-cosmológicos xavante), feijão e abóbora, desempenha um papel apenas secundário na economia. Os produtos da colheita das roças pertencem exclusivamente a cada um dos grupos domésticos – portanto, cada habitação, uma roça - e as tarefas de derrubada e queimada cabem aos homens, enquanto o plantio, às mulheres. A dieta básica tradicional consiste em produtos coletados principalmente pelas mulheres: raízes silvestres, castanhas, frutos e outros vegetais.
A coleta é suplementada por itens fornecidos pelos homens: carnes de caça e alguma quantidade de peixe, fontes de proteína que podem ser defumadas para fins de conservação. Até o início da intensificação da colonização na 1960, os Xavante obtinham esses alimentos em excursões de caça e coleta: longas viagens, que chegavam a durar alguns meses cada uma, nas quais grupos de famílias extensas iam em busca dos recursos naturais da região. Na estação seca, a fim de conduzir atividades cerimoniais, os grupos de viajantes se reuniam em grandes aldeias semi-permanentes.
Devido a esse padrão de ocupação marcado pela realização de prolongadas excursões, o território necessário para a subsistência xavante abarcava a extensão que os grupos dessem conta de explorar no transcurso de um ano. Nessas expedições, o território do grupo local era esquadrinhado distintamente por segmentos sociais compostos por conjuntos de grupos domésticos mais aparentados. Eles se mantinham em comunicação através de sinais de fumaça, objetivando a reunião de todos os segmentos ao final da expedição. Acampamentos eram feitos diariamente para o descanso de todos. Sua composição era uma “versão em miniatura da aldeia-base”, não só na forma de ferradura, como na disposição dos grupos domésticos. Hoje, tal padrão tradicional de excursões praticamente desapareceu, por conta da significativa redução das terras disponíveis ao aproveitamento xavante e do reduzido estoque de caça ali existente. Ainda assim, viagens de caça ou pesca mais curtas, nas quais grupos se ausentam da aldeia por uma ou duas noites - e ignoram as “cercas” das fazendas - são freqüentes.
As carnes de caça ocupam uma posição proeminente na dieta e na vida social. Para os homens, a caça é tanto um afazer econômico importante como um marcador de capacidades masculinas, já que é através dela que se expressam as habilidades de resistência física, rapidez, agilidade, vigilância e agressividade. Ela é componente central de alguns cerimoniais, como o Wai’a, e das celebrações de casamentos, nas quais grupos de homens saem em caçadas prolongadas. A degradação ambiental, resultado da criação de gado e do monocultivo agrícola no interior e no entorno das terras xavante, diminuiu fortemente o estoque de fauna cinegética disponível. As carnes e os pescados, principais fontes protéicas, são escassos na maioria das áreas xavante atuais; nas menores delas, a carência de caça é severa. Além disso, como as atuais terras dos Xavante não representam mais do que pequenos fragmentos da extensão total de que eles antes dispunham para sua subsistência, encontrar um suficiente número de presas – especialmente para cerimoniais como casamentos, que requerem grandes quantidades de carne – é algo que leva os grupos de caçadores indígenas a adentrar as fazendas particulares com freqüência, tanto para exercitar suas caçadas como para demandar junto aos fazendeiros cabeças de gado. Essa situação, em muitos casos, resulta em graves conflitos com regionais.
Apesar do esforço xavante em manter seu modo de vida tradicional, a intrusão das atividades voltadas para o mercado evidentemente desordenou significativamente o estilo de vida e a economia tradicionais xavante. A fim de facilitar e acelerar a assimilação dos Xavante à economia e à sociedade regionais, as políticas governamentais implementadas pelo SPI (Serviço de Proteção aos Índios) e, posteriormente, pela Funai (Fundação Nacional do Índio, substituta do SPI a partir de 1967) encorajaram-os a adotar certas práticas econômicas, em particular a agricultura de coivara e a criação de gado. Como as terras de que os Xavante dispunham já não podiam sustentar sua economia tradicional e fornecer-lhes meios viáveis de subsistência, eles se tornaram crescentemente dependentes dos produtos que cultivavam em roças de coivara, assim como da Funai, com quem contavam para angariar donativos – freqüentemente, bens que podiam ser adquiridos em cidades próximas. Se em décadas anteriores, a necessidade de dinheiro levou alguns homens a oferecer-se como mão-de-obra remunerada a fazendeiros, atualmente, muitos xavante possuem cargos remunerados na Funai, seja em suas próprias terras (como chefe-de- posto), seja nas sedes regionais ou mesmo na sede central do órgão em Brasília. Remunerações advindas de aposentadorias, de convênios entre associações indígenas e diversos órgãos governamentais e não-govenamentais e de cargos de professores e monitores de saúde indígena também entram nos rendimentos gerais obtidos na atualidade pelas comunidades xavante.
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/xavante/1645
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