segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Antropofagia

A origem da palavra “antropofagia” remete às expressões gregas antropos, “homem, humano”, e phagos, “comer”. “Canibal”, por sua vez, corresponde a uma alteração de caribal, relativo a caribe, designação usada em referência às populações que habitavam parte das Antilhas, na região caribenha, à época da chegada dos europeus nas Américas. Ali os estrangeiros testemunharam rituais antropofágicos, passando a usar o termo “canibal” para outros povos que também comiam carne ou ossos humanos.

Casos como os dos Tupinambá, Guayaki, Wari', Yanomami e Araweté, ilustrados nesse texto, mostram como o pensamento ameríndio atribuía e ainda atribui múltiplos sentidos à antropofagia. Começaremos a discutir esta questão, no entanto, com um exemplo de canibalismo entre não indígenas.


Em dezembro de 1972, um grupo de jovens uruguaios sobreviventes de um acidente aéreo foram resgatados na cordilheira dos Andes e confessaram ter comido a carne dos que haviam morrido como forma de manterem-se vivos. Neste episódio o canibalismo teve uma finalidade nutricional, pragmática, se apresentando como única alternativa alimentar aos sobreviventes, até que fossem socorridos.

Muito diferentes eram as motivações de povos indígenas que praticam ou que praticavam, nos primeiros tempos da colonização europeia na América, a antropofagia. O consumo de carne ou ossos humanos jamais serviu para "matar a fome", e sim para dar sentido à vida, em razão de seu imenso valor simbólico. Em muitas cosmologias ameríndias, alimentar-se de partes do corpo humano era uma forma de incorporar (trazer para si) capacidades, como a coragem, ou de garantir a vida junto aos deuses após a morte. Muitos povos acreditavam, por exemplo, ser um modo de evitar que o espírito do morto fizesse mal aos vivos.

Seja como for, na maioria dos casos, o canibalismo era motivo de orgulho ou alívio tanto para os que comiam como para os que eram comidos, já que não apodreceriam debaixo da terra. Muitos ameríndios achavam melhor serem comidos por um humano do que por vermes, urubus, entre outros seres. Nesse pensamento, o túmulo mais honroso para um humano era o estômago de outro humano.

As práticas antropofágicas variavam imensamente entre os grupos indígenas, no entanto tinham algo em comum: eram formas de expressão de uma filosofia de vida que identificava no outro – seja ele um inimigo, um morto, um deus, um estrangeiro e ou mesmo um não-indígena – fonte de conhecimento e de reconhecimento. Dos outros vinham capacidades a serem incorporadas pelo “eu”, ou pelo “nós” – ou seja, pelo sujeito ou pelo grupo.

Antropofagia guerreira entre os Tupi da Costa
“Toda essa costa marítima, na extensão de 900 milhas, é habitada por índios que sem exceção comem carne humana; nisso sentem tanto prazer e doçura que frequentemente percorrem mais de 300 milhas quando vão à guerra. E se cativarem quatro ou cinco dos inimigos, sem cuidarem de mais nada, regressam para, com grandes vozearias e festas e copiosíssimos vinhos, que fabricam com raízes, os comerem, de maneira que não perdem sequer a menor unha, e toda vida se gloriam daquela egrégia vitória. Até os cativos acreditam que lhes sucedem coisa nobre e digna, deparando-se-lhes morte tão gloriosa, como eles julgam, pois dizem que é próprio de ânimo tímido e impróprio para a guerra morrer de maneira que tenham que suportar na sepultura o peso da terra, que julgam ser muito grande” (Padre José de Anchieta, 1554).
Esse relato do século 16, deixado pelo jesuíta Anchieta, se aproxima de muitos outros escritos de missionários e viajantes europeus nas primeiras décadas de colonização no território que viria a ser o Brasil, como André Thevet, Jean de Léry, Hans Staden, Fernão Cardim, Manuel da Nóbrega, entre outros.

Suas descrições e interpretações de práticas antropofágicas compõem um rico acervo histórico sobre as populações nativas. Mas os valores e o universo cultural desses autores eram muito diferentes daqueles dos ameríndios, resultando em uma série de mal entendidos. Alguns viajantes inclusive não consideravam os indígenas como parte do gênero humano, estando mais próximos dos animais selvagens, tema que suscitou acalorados debates na Europa acerca da unidade do gênero humano.

Neste comentário de Anchieta, podemos questionar a afirmação de que todos os nativos da costa brasílica praticavam canibalismo. Não eram todos antropófagos, e, entre os que eram, não se tratava de uma prática cotidiana. Como o próprio Anchieta diz, percorriam longas distâncias para capturar apenas quatro ou cinco inimigos. Entre os Tupinambá, por exemplo, havia um período preparatório, que poderia durar meses ou anos, para cativos que seriam devorados. Além disso, os embates indígenas descritos pelos estrangeiros envolviam uma aguerrida performance, mas as grandes matanças costumavam ocorrer mesmo nas guerras dos europeus contra os índios.

Entre os falantes de Tupi na costa do Brasil a que os cronistas reuniram sob a designação Tupinambá, mais importante do que matar era capturar, domesticar e comer inimigos. São por isso conhecidos como um exemplo de exocanibalismo guerreiro, em que se come inimigos capturados em guerra, não pertencentes ao grupo. "Doçura” é a palavra escolhida por Anchieta para descrever o sentimento dos índios em relação a essas práticas, cuja alegria e orgulho pareciam ser compartilhadas pela vítima, poupada do apodrecimento do corpo e do peso da terra por ocasião de sua morte.

Discursos e devoração
Entre os Tupinambá da Costa, conforme as fontes históricas, as relações entre o cativo e os captores chegava a durar meses ou mesmo anos. Nas aldeias, o cativo recebia tratamento comparado a um xerimbabo, animal de estimação. Não raro, ele também se convertia em cunhado ou genro de seus algozes, pois a ele era oferecido uma esposa, por vezes a filha ou irmã daquele que o capturara e que o esfacelaria o crânio. No dia de sua morte, era feita uma grande festa, com convidados de outras localidades. As mulheres então preparavam bastante cauim, bebida fermentada de mandioca ou milho. O cativo era lavado e amarrado com uma corda na cintura no pátio da aldeia, onde travava um agressivo diálogo cerimonial com o matador, que lhe acusava de ter matado e comido seus parentes.

O cativo confirmava com orgulho as acusações, afirmava não temer a morte e anunciava que seus parentes iriam vingar sua morte. A vingança era ainda destacada pelo matador como motivo do ato que estava prestes a cometer. Assim, as mortes sempre aconteciam por vingança de outras mortes, de modo que o passado de uma vítima era o de matador, e o futuro de um matador seria o de uma vítima.

Ao final dos discursos, o cativo recebia uma pancada na cabeça com a ibirapema, espécie de espada de madeira. Era então assado ou moqueado – sua carne defumada em uma estrutura de madeira chamada moquém – e suas partes distribuídas entre os residentes e convidados. O único que não podia comer sua carne era o matador, que deveria viver isolado por um período, quando recebia um novo nome e escarificações na pele que davam conta de seu feito.

Marcas de distinção
Nesses cerimoniais, não apenas os que executavam cativos, mas também os que esfacelavam crânios em combates ganhavam nomes, marcas nos corpos e tinham facilidade em conquistar mais esposas. E, assim como matar era fonte de prestígio, ser comido pelo inimigo constituía a morte mais honrosa, principalmente se executada por um renomado guerreiro.

Ao mesmo modo, aquele a ser comido deveria se aproximar ao máximo de um guerreiro tupinambá, que correspondia ao ideal de humanidade. Por compartilharem o significado da morte e da devoração, havia uma cumplicidade entre cativos e captores, de forma que o inimigo ideal de um Tupinambá era outro Tupinambá. Mesmo os europeus, como ocorreu com Hans Staden, aprisionado pelos Tupinambá em 1554, eram depilados e pintados quando capturados, para assim se tornarem mais dignos e prestigiosos.

Morte e vida eterna
Além de fonte de reconhecimento e vingança entre os vivos, o canibalismo era entendido como caminho para a Terra sem Mal, a morada dos deuses, após a morte. De acordo com os Tupinambá, os que não conseguiam se vingar depois da morte não alcançariam a terra dos imortais, marcada pela abundância de comidas e festas. O destino dos covardes é ficar com anhang, espírito maléfico, causador de doença e morte aos vivos. Como afirma Jean de Léry em 1578:


“Acreditam não só na imortalidade da alma, mas que, depois da morte, as que viveram dentro das normas consideradas certas, que são as de matar e comer muitos inimigos, vão para além das altas montanhas dançar em lindos jardins com as almas de seus avós”.
Como as mulheres não iam para a guerra, consumir a carne de um inimigo era a principal via de acesso à longevidade e à terra divina após a morte. Dizem os cronistas do século XVI que elas eram as mais ávidas na devoração dos inimigos. Assim, não comer o outro ou não se vingar era não ter acesso ao paraíso. Tal concepção de vida era bem diferente da cristã, em que para atingir o reino dos céus é preciso não se vingar, e sim “dar a outra face”.
Pensamento antropofágico
Práticas canibais despertaram horror entre os cristãos, que buscaram reprimi-las.

Após muitas pressões e repressões por parte dos missionários e colonos, os Tupinambá foram deixando as práticas canibais. Por outro lado muitas populações ameríndias seguiram valorizando a incorporação de conhecimentos e capacidades dos outros como forma de se fortalecerem e estarem sempre se transformando.

Nesse sentido, Hans Staden conta, em seu livro publicado em 1557, que o líder Cunhambebe, com um cesto cheio de carne humana, ofereceu-lhe um pedaço da perna que estava devorando. O cronista estrangeiro então questionou o consumo de carne humana por um humano, já que nem os animais comem outros de sua espécie. A resposta de Cunhambebe foi a de que, naquele momento, ele era uma onça. Assim, o ato de comer implica se transformar no outro, assumindo sua perspectiva, que pode estar aquém (animal, no domínio da natureza) ou além (deus, no domínio da sobrenatureza) da condição humana. Esse significado do canibalismo, ligado a alteração de si, permaneceu nos séculos seguintes.

Assim como se deu com as práticas tupinambá, alguns rituais antropofágicos se extinguiram em razão das pressões e ameaças dos colonizadores, mas, em muitos casos, o princípio filosófico do canibalismo - a incorporação do outro -, seguiu dando sentido aos mundos ameríndios sob outras formas.

Canibalismo celeste
Para os Araweté, povo tupi da Amazônia oriental, os canibais estão acima da terra onde vivem os homens. As divindades Maï devoram as almas dos mortos recém-chegados ao céu, depois lavam seus restos mortais e as ressuscitam. Imortais e eternamente jovens, essas almas, convertidas em Maï, passam a viver num paraíso perfumado e abundante de bebida, música e prazeres carnais. Eduardo Viveiros de Castro (1986), que pesquisou os Araweté, conta que só os matadores não são comidos pelos Maï, sendo temidos por estes e reconhecidos como já divinizados. O autor aponta aí uma aproximação com a divinização conferida aos guerreiros entre os Tupinambá. O canibalismo celeste e terrestre, respectivamente, Araweté e Tupinambá, podem ser reconhecidos como versões de um mesmo universo simbólico canibal, compartilhado por muitos outros ameríndios.

Antropofagia funerária
Além da modalidade guerreira, existiram e existem outras práticas antropofágicas entre os povos indígenas. Os Guayaki e os Wari' são grupos que há décadas praticavam a antropofagia funerária, que envolvia o consumo carne de parentes ou co-residentes mortos. Essa modalidade foi chamada de endocanibalismo, por se tratar de um ritual realizado com membros do grupo em questão. Já os Yanomami associam em seus ritos duas formas de canibalismo, o funerário e o guerreiro.


Práticas Guayaki
Pierre Clastres comentou um exemplo de prática antropofágica entre os Guayaki, povo da floresta do Paraguai, com quem conviveu nos anos 1960. Os Guayaki comiam a carne de seus mortos, porque seu espírito se libertava depois da morte e podia constituir um perigo para os vivos, caso não fosse encaminhado à morada celeste dos imortais. Os Guayaki disseram a Clastres que quando alguém morria, sua alma queria entrar em outro corpo, podendo causar doença ou morte. Quando o corpo que a abrigava era dividido em pedaços e consumido por vários outros corpos, a alma perdia seu referencial e ia para a morada celeste. Assim, na interpretação de Clastres, era o medo do mundo dos mortos que motivava o canibalismo guayaki.

Clastres conta que alguns brancos que estavam em contato com os Guayaki naquele período os ameaçaram e convenceram a não mais comerem os mortos. Os Guayaki atribuíram tal medida a surtos de gripe e rubéola que os assolaram em seguida, dando sentido ao mal estar pela desorganização de seu mundo, em que não comer carne de morto significaria estar condenado à morte.

O autor ainda destaca que os vivos desejavam ser comidos por ocasião de sua morte, garantindo assim que sua alma fosse encaminhada ao seu devido destino. Neste caso, tal tarefa não cabia aos parentes mais próximos, mas aos aliados ou estrangeiros.

Práticas Wari'
De acordo com a antropóloga Aparecida Vilaça, os Wari', habitantes do estado de Rondônia, antigamente tinham o costume de comer tanto os inimigos quanto os parentes. No caso destes últimos, os consanguíneos considerados parentes mais próximos organizavam o ritual funerário, e os afins, aqueles relacionados ao morto por casamento (como cunhados, genros e sogros), consumiam a carne.

O choro ritual dos co-residentes se iniciava com o reconhecimento do sujeito como moribundo, em caso de doença. Com a morte, eram chamados parentes de outras aldeias, que chegavam em dois ou três dias. Enquanto isso, o cadáver apodrecia e então era moqueado pelos afins. Os consanguíneos mais próximos desfiavam a carne e a colocavam sobre uma esteira, junto à pamonha de milho, onde era comida pelos afins. Vilaça comenta que o consumo da carne devia ser feito com parcimônia e sofrimento, o que era agravado por seu apodrecimento prévio.

Depois da devoração, todas as coisas do morto eram queimadas, inclusive sua casa, roça e lugares por onde costumava passar. Os parentes entravam então em um luto, cujo período dependia da proximidade com o morto, em que não participavam de festas nem falavam muito. O fim do luto era marcado por uma caçada coletiva, em que as presas eram moqueadas, choradas e ingeridas como se fossem o morto, mas, neste caso, eram comidas por todos. A partir de então o espírito passava a viver plenamente no mundo subaquático dos mortos e quando quisesse voltar à superfície da terra, o fazia na forma de queixada, sendo comido pelos Wari' e retornando assim ao mundo dos mortos.

Em razão do contato mais intenso com os brancos, particularmente com missionários protestantes, os Wari' deixaram de comer os mortos, passando a enterrá-los.

Práticas Yanomami


Entre os Yanomami, o canibalismo mortuário e o canibalismo guerreiro se complementam simbolicamente por meio da divisão do trabalho funerário entre parentes, afins e inimigos. Mesmo quando não ocorre de forma efetiva (com a ingestão das cinzas do morto misturadas a um mingau de banana), o consumo (real ou simbólico) de partes do morto e a eliminação de todos os traços que despertam sua memória garantem que o espírito do falecido siga para sua morada no mundo dos mortos (hutu mosi). A correta realização dos ritos funerários é fundamental para a manutenção do equilíbrio cósmico, uma vez que todo o ciclo da vida repousa sobre a separação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.

Com exceção das mortes por velhice, não há, entre os Yanomami, morte considerada natural. As doenças são diagnosticadas como decorrência: de uma agressão realizada por espíritos deletérios - muitas vezes enviados por xamãs inimigos -, da morte de um “duplo animal” (rĩxi a) ou de ações de feitiçaria guerreira. Em caso de conflitos intercomunitários, as mortes violentas diagnosticadas como fruto de ações xamânicas ou feitiçaria são seguidas de procedimentos realizados separadamente. De um lado, por, parentes e afins, e de outro, pelos inimigos e “matadores”.

Após a morte, o defunto é envolto em folhas e cipós e suspenso em uma árvore em alguma parte remota da floresta. Enquanto as partes moles de seu corpo se decompõem, seus parentes organizam uma grande festa. Convidam aldeias aliadas e saem para uma caçada coletiva (henimu) que dura alguns dias.

Longe dali, o responsável pela morte se isola de sua comunidade para cumprir os ritos de “purificação do matador” (unokaemu). A poluição pelo cheiro do sangue de sua vítima (mesmo em casos de morte por feitiçaria ou xamanismo guerreiro) pode levá-lo à morte. Simbolicamente, sua condição o iguala a um animal necrófago, como o urubu, por isso, a decomposição do cadáver é compreendida como a digestão simbólica da carne e do sangue do morto no estômago do matador. O ritual de purificação se completa ao mesmo tempo em que a decomposição das carnes do defunto chega ao fim. O matador se submete ao final do ritual de purificação, se pinta, veste adereços e retorna a sua comunidade.

No mesmo período, os ossos do morto são recolhidos por seus parentes e tem início o grande festival funerário intercomunitário denominado reahu. Durante a festa, os ossos do morto são queimados em uma grande fogueira. Suas cinzas são recolhidas e acondicionadas em cabaças distribuídas entre seus parentes. Meses mais tarde, essas cabaças serão reabertas em um novo ciclo de festividades funerárias, na qual aliados se encontram para chorar o morto. Nessas ocasiões, as cinzas do defunto podem ser ingeridas misturadas a um mingau de banana ou enterradas, dependendo da região, da causa da morte ou da idade da pessoa morta.

A antropofagia é, antes de tudo, uma forma de pensamento que, entre os Yanomami, movimenta um sistema de reciprocidade ritual. O trabalho funerário é dividido entre aliados, que no papel de sepultadores, trocam o consumo ritual das cinzas do cadáver pelos alimentos e a hospitalidade do anfitrião que organiza a festa, e os inimigos matadores, que consomem simbolicamente as carnes e o sangue de sua vítima, efetivando assim a eliminação dos traços do morto. A separação entre vivos e mortos fundamenta tudo isso. Dessa forma, a existência do mundo dos vivos é garantida pela preservação da periodicidade, sustentada essencialmente pela eliminação de todo e qualquer traço que possa provocar o retorno dos espectros.

http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/modos-de-vida/antropofagia

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