Índios Munduruku. 1828. Pintura de Hércules Florence. |
Município: Jacareacanga.
Estado: PA
População: 9.630
Um pouco de história
O povo indígena Mundurukú é pertencente ao tronco lingüístico Tupi, família lingüística Mundurukú; autodenomina-se Wuyjugu e, segundo os saberes difundidos oralmente entre alguns anciãos, a designação Mundurukú, como são conhecidos desde fins do século XVIII, é como estes eram denominados pelos Parintintins, povo rival que estava localizado na região entre a margem direita do rio Tapajós e o rio Madeira. Esta denominação teria como significado “formigas vermelhas”, em alusão aos guerreiros Mundurukú que atacavam em massa os territórios rivais.
Os Mundurukú têm como seu território mais tradicional os campos interiores do alto Tapajós. No mito de origem, Karosakaybo criou os Mundurukú na aldeia Wakopadi, situada nos campos centrais, próximo às cabeceiras do rio Krepori, local hoje situado nas proximidades do limite leste da terra demarcada em 2001.
As primeiras notícias sobre o contato das frentes colonizadoras com os Mundurukú datam da segunda metade do século XVIII, sendo a primeira referência escrita feita pelo vigário José Monteiro de Noronha, em 1768, que os denominou “Maturucu” , quando foram avistados às margens do rio Maués, tributário do rio Madeira, antiga Capitania do Rio Negro – atual estado do Amazonas. Local onde, atualmente, existem comunidades desta etnia cuja história de contato e relações com a sociedade nacional apresenta aspectos distintos das comunidades Mundurukú situadas na região do alto Tapajós. Hoje, a população Mundurukú da bacia do Madeira habita a Terra Indígena Coatá-Laranjal e São José do Capim, somando aproximadamente 2.000 pessoas.
Este povo indígena ficou conhecido na historiografia como uma nação audaciosamente guerreira, que realizava grandes excursões do Madeira ao Tocantins, com a finalidade, entre outras, de obter troféus: cabeças de inimigos, que eram mumificadas e às quais se atribuíam poderes mágicos. Os Mundurukú dominaram bélica e culturalmente o Vale do Tapajós desde o final do séc. XVIII, região conhecida secularmente como Mundurukânia, onde permanecem até os dias de hoje, seja em terras reconhecidas oficialmente, seja vivendo em pequenas comunidades ribeirinhas, a exemplo de Mamãeanã e Pimentel, esta última situada a apenas 1 hora (de motor de popa) de Itaituba. Próximo à área urbana desta cidade, existem duas pequenas terras indígenas ocupadas por comunidades indígenas desta etnia, Praia do Índio e Mangue.
Os Mundurukú só foram vencidos pelos colonizadores após o envio de várias expedições e tropas de resgate, organizados pelos portugueses em retaliação à resistência mantida pelos indígenas por meio de ataques aos povoados, finalizada com a adoção de “acordos de paz” entre chefes Mundurukú e autoridades coloniais do interflúvio da região do baixo Madeira/Tapajós, ao final do século XVIII, a exemplo do acordo que foi celebrado com a Vila de Santarém. A partir de então, foram colocados em aldeamentos missionários, inseridos na exploração das chamadas drogas do sertão, sendo que alguns grupos continuaram guerreando contra etnias rivais, facilitando a ação dos colonizadores quanto à ocupação da região.
Em decorrência das vastas áreas que ocupavam e em que perambulavam, os contatos dos Mundurukú com as frentes de expansão variaram de acordo com a proximidade e facilidades de acesso aos seus territórios. Fatos que resultaram no surgimento de aspectos diferenciados da cultura entre os indígenas localizados nas margens do rio Tapajós, rio Madeira, Cururú e na área de cerrado conhecida como campos do Tapajós .
Adicionar legenda |
A partir da segunda metade do século XIX, a expansão da economia extrativista consolidou a exploração do caucho (castilloa elástica) e da seringueira (hevea brasilienses), dando origem ao chamado ciclo da borracha, inserindo a Amazônia no mercado capitalista internacional. Este fato acelera o processo de ocupação não-indígena no alto Tapajós e demais áreas de concentração das chamadas gomas elásticas. Especialmente a partir do final do século, com o deslocamento de milhares de trabalhadores da região Nordeste do Brasil, que foram submetidos – como mão-de-obra compulsória – à exploração da borracha, dentro do sistema conhecido como barracão, controlado pelos donos dos seringais.
Este quadro econômico provocou a invasão de territórios indígenas, obrigando ao constante deslocamento das sociedades nativas em toda região amazônica. Para os Mundurukú, esses acontecimentos, aliados ao primeiro aldeamento missionário a se estabelecer na parte alta das cachoeiras do Tapajós, marcam um ciclo na sua história, por representar a presença contínua de não-indígenas em uma região anteriormente sob seu controle. O primeiro aldeamento nesta região, conhecido como Missão Bacabal, foi estabelecido em 1872, abaixo da foz do rio Krepuri, sob controle de padres franciscanos. Mesmo assim, as aldeias tradicionais situadas em locais de difícil acesso, ou seja, nos campos, permaneceram autônomas durante muito tempo, existindo registros de viajantes e cronistas que passaram pela região sobre incursões guerreiras até os primórdios do século XX.
Os estudos existentes na história e antropologia atribuem ao comércio que era realizado pelos regatões – comerciantes que percorriam os rios vendendo produtos (açúcar, tecidos, sal, cachaça etc.) a partir do final do séc. XIX – uma influência preponderante sobre o deslocamento dos Mundurukú das aldeias tradicionais do campo para as margens dos rios navegáveis da região, particularmente o Tapajós e o Cururú. Segundo esta versão, os Mundurukú das aldeias do campo passaram a se deslocar, na estação da seca, para as margens do Tapajós, com a finalidade de efetuar a troca de borracha e produtos da floresta por bens industrializados, e desta forma foram se fixando nas margens dos rios. Porém, na tradição oral deste povo, as explicações são outras. Mesmo narrando os deslocamentos sazonais para o Tapajós e, posteriormente, para o rio Cururú, outros fatores foram decisivos para a fixação nas margens dos rios, a exemplo de uma grande epidemia de sarampo ocorrida na década de 40, quando parte significativa da população foi dizimada, ocorrendo inclusive a morte de chefes de grandes aldeias tradicionais dos campos.
Esse movimento de deslocamento, mesmo nas primeiras décadas após o estabelecimento da Missão São Francisco no rio Cururu, em 1911, mantinha um caráter sazonal, isto é, as idas dos Mundurukú para as margens do Tapajós e Cururu ocorriam no período da estiagem. Mais tarde, chega à região o Serviço de Proteção aos Índios – SPI, o qual cria, em 1940, o Posto de Atração Kayabí, no Rio São Manoel. Cria, também, em 1942, o Posto Indígena de Atração Mundurukú, no rio Cururu, contribuindo, ao lado da Missão Franciscana, para o aceleramento e a consolidação do processo de deslocamento dos Mundurukú, como também dos Kayabí e Apiaká. Ambas as instituições exerceram papéis importantes na solidificação do trabalho de extração de caucho e borracha entre os indígenas, exercendo atração para o deslocamento de grande parte da população dos campos para o rio Cururú.
É fato, também, que contribuíram para marcar a manutenção do espaço territorial dos Mundurukú em face do assédio da frente de expansão de caráter extrativista, que foi marcada por dois períodos de maior intensidade. O primeiro de cerca de 1880 a 1920, quando floresceu a economia e a cultura gomífera em toda Amazônia, cujo declínio ocorreu em conseqüência da concorrência dos seringais ingleses cultivados na Malásia; e o segundo no período da 2ª Guerra Mundial e durante a década pós-guerra, devido à suspensão das relações econômicas com o Extremo Oriente, quando, com o apoio do governo americano, o Brasil adotou uma expressiva política de incentivo à produção da borracha, criando linhas de financiamento para as atividades e estimulando o deslocamento de nordestinos para trabalharem como seringueiros, denominados oficialmente “soldados da borracha”.
Aspectos da organização social e da cultura
A sociedade Mundurukú dispõe de uma organização social baseada na existência de duas metades exogâmicas, que são identificadas como a metade vermelha e a metade branca. Atualmente, são cerca de 38 os clãs mais conhecidos, que estão divididos entre as duas metades, de onde se originam não apenas as relações de parentesco como também diversos significados na relação com o cotidiano da aldeia, com o mundo da natureza e do sagrado. Na organização da sociedade Mundurukú, a descendência é patrilinear, isto é, os filhos herdam o clã do pai, sendo que a regra de moradia é matrilocal, a qual ainda predomina até os dias atuais, fato que condiciona o rapaz recém-casado a passar a morar na casa do sogro, a quem deve prestar sua colaboração nas tarefas de fazer roças, pescar, caçar e todas as demais atividades relacionadas à manutenção da casa, onde se inclui acompanhar a família nos trabalhos de extração e coleta nos seringais e castanhais. Geralmente este período de moradia corresponde aos primeiros anos de casamento, até o nascimento do segundo filho; depois desta fase o marido providencia a construção da casa para sua família.
Nos últimos anos, em algumas famílias e aldeias inclui-se o trabalho nos garimpos de ouro entre as atividades de manutenção da casa, realizado geralmente na região dos rios Kaburuá e Tropas, com a exploração de pequenas grotas e baixões. Por outro lado, o recebimento dos benefícios sociais do INSS por parte de anciãos ocasionou algumas mudanças no papel de provedor dentro das famílias. Os benefícios recebidos geralmente são socializados, com especial atenção para os netos, sendo que, na maioria das vezes, contribuem para a aquisição de produtos a que antes só tinham acesso por meio do trabalho de extração de borracha e outras atividades de exploração de recursos naturais.
Sendo clãs exogâmicos, uma pessoa pertencente a uma determinada metade só pode contrair casamento com uma pessoa da metade oposta, que se torna ao mesmo tempo complementar. Assim, uma pessoa do clã Bõrõ, um dos muitos clãs da metade branca, só poderá casar-se com alguém de um clã pertencente à metade vermelha, como Karo. As possibilidades são variadas, sendo que entre os da metade branca estão, por exemplo: Kirixi, Akai, Saw; na metade vermelha: Kabá, Tawé, Wako e mais. Os nomes dos clãs correspondem a diferentes elementos da natureza, como árvores, pássaros, mamíferos, que fazem parte da rica cosmologia dos Mundurukú, estando muitas vezes presentes nas narrações e canções tradicionais que explicam o mundo e as relações dos homens dentro dele.
O casamento preferencial, mas não obrigatório, é realizado com primos cruzados. Isto significa que o rapaz ou a moça muitas vezes casa com primos do lado materno, que portanto não pertencem ao mesmo clã. Pelas informações que predominam, o casamento entre os Mundurukú nunca foi objeto de grandes rituais, apesar de apresentar regras claras e precisas de namoro, pedido, aproximação e consolidação, sendo permitida a separação. O casamento é uma área das relações sociais muito importante no equilíbrio da sociedade, essencial para o bom relacionamento das famílias, para relações de troca e solidariedade e para a organização política da comunidade.
Outros aspectos do mundo da cultura
A partir do contato com as frentes econômicas e as instituições, vários aspectos da vida cultural dos Mundurukú sofreram mudanças. Sendo um povo guerreiro, várias expressões culturais significativas estavam relacionadas às atividades de guerra, a qual tinha um caráter simbólico marcante para constituição do homem e da sociedade Mundurukú. Os deslocamentos das aldeias tradicionais para o estabelecimento nas margens dos rios, formando pequenos núcleos populacionais, por certo também contribuíram para o desaparecimento da casa dos homens, unidade importante na aldeia tradicional, e para a permanência de alguns rituais de caráter coletivo que estavam relacionados às atividades de provisão de alimentos, divididas em estação da seca (abril a setembro) e estação das chuvas (outubro a março). Entre estes rituais estava o da “mãe do mato”, realizado no início do período das chuvas, visando a obter permissão para as atividades de caça, proteção nas incursões pela floresta e bons resultados na caçada. Alguns elementos desta atividade ainda estão presentes, ou foram recriados com novos significados, especialmente na relação de respeito com os animais caçados, nas práticas do cotidiano do homem caçador para obter caça, nas regras alimentares.
Os Mundurukú mantêm algumas práticas culturais relacionadas à pesca, atividade de maior intensidade no verão, entre elas as brincadeiras que antecedem a pescaria com timbó, uma raiz que, após ser triturada, é usada nos rios para facilitar a captura dos peixes. Geralmente, no dia anterior à “tingüejada”, a raiz do timbó é triturada sobre troncos, onde é batida de forma ritmada, com pedaços de paus, pelos homens. As mulheres, especialmente as jovens, apanham urucum ou a seiva em forma de goma branca de um arbusto chamado sorva e passam a perseguir os homens, com a finalidade de passar os produtos no rosto e nos cabelos deles; estes correm e isto vira um jogo que percorre a aldeia inteira. Para os Mundurukú, esta é uma forma de alegrar os peixes e obter fartura na pescaria do dia seguinte.
Atualmente, em algumas aldeias, ainda são tocadas periodicamente as flautas parasuy, instrumentos importantes na mitologia Mundurukú, apesar de os tocadores serem homens velhos, fato que compromete a continuidade da tradição. No entanto, têm surgido – por parte dos jovens, especialmente professores e novas lideranças –, iniciativas visando à preservação das canções e músicas tradicionais.
A riqueza da cultura Mundurukú é extraordinária. Este povo tem um repertório de canções tradicionais cuja musicalidade e poesia são incomuns, as quais descrevem relações do cotidiano, frutos, animais etc. A cosmologia apresenta narrativas que incluem conhecimentos sobre os astros e as constelações do céu, como a via láctea, chamada kabikodepu, onde são identificadas as estrelas que a compõem.
Na cultura material, destacam-se as cestarias e os trançados, que são atividades masculinas, cabendo ao homem a confecção do ico, cesto com o qual as mulheres carregam os frutos e produtos da roça, as peneiras e demais utensílios de uso doméstico. Nos cestos Mundurukú são grafados com urucum desenhos que identificam o clã do marido. Assim como as tipóias para carregar as crianças, confeccionadas pelas mulheres com a fibra extraída de uma árvore, identificam, com a cor natural vermelha ou branca, a metade exogâmica à qual a criança pertence.
Alguns homens, e especialmente as mulheres, são exímios artistas na confecção de colares com figuras zoomorfas (peixes, tracajás, gato do mato, jacaré etc.) esculpidos em inajá e tucumã. A cerâmica, atividade feminina por excelência, encontra-se quase desaparecida, existindo algumas mulheres, na aldeias Kaburuá e Katõ, que ainda dominam as técnicas tradicionais. Há informações que, entre os Mundurukú da Terra Indígena Coatá, no estado do Amazonas, essa prática está mais presente. A tecelagem, principalmente de redes de algodão, também está em desuso, apesar de contar com um número considerável de mulheres maduras e idosas que têm conhecimento da técnica, e por vezes confeccionam peças para venda como artesanato.
Economia ou meios de vida
Nas sociedades indígenas, as diferentes dimensões da cultura, como a forma de ver o mundo, o fazer cotidiano, as relações de parentesco, não estão dissociadas. Assim, falar da economia Mundurukú nos remete a todos os aspectos acima citados.
Os meios de vida relacionados à produção e à obtenção de alimentos entre os Mundurukú constituem, de forma preponderante, o campo da economia tradicional, apesar da inclusão de alguns produtos nos hábitos alimentares que precisam ser comprados regularmente, dos quais os mais presentes são o sal, o café e o açúcar.
A agricultura é praticada conforme os conhecimentos imemoriais, em terra firme, com pleno aproveitamento dos espaços e o plantio consorciado de culturas. Os cultivos mais presentes são os diferentes tipos de mandioca, bananas, batatas, cana, cará . As frutíferas são plantadas, na maioria das vezes, nos caminhos para as roças.
Na divisão social do trabalho, cabe ao homem fazer a broca e derrubada da mata onde será aberta a roça de toco. A coivara, limpeza após a queimada, normalmente é feita por toda a família. O plantio de mandioca é feito com a participação do homem e da mulher; outros cultivos, como as batatas, cará, abacaxi e pimentas, são realizados apenas pelas mulheres. Normalmente as atividades de capina das roças e as colheitas são feitas pelas mulheres.
Atividades como a pesca, caça e coleta têm relevância na obtenção de alimentos pelos Mundurukú e se organizam de forma sazonal, de acordo com as estações do ano. A pesca por certo constitui atualmente a principal forma de obter proteína animal, sendo realizada cotidianamente na estação seca, com bons resultados, e menos praticada no período das chuvas, quando os rios enchem, formando igapós e dificultando a atividade. A coleta de frutas é realizada em diferentes períodos do ano, de acordo com a safra de cada frutífera (açaí, patauá, bacaba, uxi, jubá, pupunha, murici, ingá, castanha etc.). Os densos sucos, chamados na região de vinhos, têm papel importante na alimentação, especialmente no período chuvoso, quando o peixe se torna escasso, e compõem, ao lado da farinha e da carne de caça, a base da alimentação no inverno.
Quanto aos meios para a obtenção de rendimentos que possibilitem a aquisição dos produtos de que necessitam (sal, açúcar, sabão, roupas, sandálias, combustíveis etc.), os Mundurukú atualmente desenvolvem atividades de produção de farinha em algumas comunidades do rio Tapajós, coleta de castanha em muitas comunidades dos diferentes rios e produção de borracha, atividade, cada vez menos praticada, pelo fato de os preços oferecidos serem muito baixos. Como foi dito no início, os Mundurukú participaram, como mão-de-obra, dos períodos áureos do extrativismo da borracha; desta forma, esta atividade acabou sendo incorporada ao seu universo cultural.
Após a queda dos preços da borracha, a região do Tapajós foi descoberta, ao final da década de 50, como grande produtora de ouro. Este movimento se intensificou posteriormente à construção da rodovia Transamazônica, em 1972, e teve seu auge no período de 75 a 90. Os Mundurukú passaram a participar dos trabalhos de exploração aurífera com maior intensidade a partir da década de 80, seja fazendo “reco” nos garimpos de balsa, nos rios Tapajós e São Manoel, seja visitando as explorações dos não-índios nos garimpos de baixão, até darem início aos garimpos no lado leste da terra indígena, entre os rios Cabitutu, Kaburuá e Tropas. Muitos lugares de exploração foram abandonados, pelo baixo rendimento, porém, a produção de ouro em pequenas quantidades ainda garante rendimentos para muitos jovens pais de família.
Nos últimos anos, o declínio da exploração aurífera em toda região, bem como a consciência dos danos causados por estas atividades à saúde e aos aspectos socioculturais da população, têm levado algumas comunidades indígenas a se interessarem novamente pelas atividades florestais renováveis, tentando encontrar alternativas de beneficiamento para agregar valor a produtos como borracha e castanha. Este processo ainda se encontra em fase embrionária, necessitando de elaboração de projetos específicos visando à obtenção de recursos que financiem as atividades. Porém está aliado às discussões que os Mundurukú têm mantido nos últimos anos, que se concentram na questão da defesa do território e na preservação dos recursos naturais e da cultura.
Organização em face dos novos desafios
A região do alto rio Tapajós é considerada a maior província aurífera, potencialmente, do estado do Pará; no entanto a maioria dos afluentes desta bacia encontram-se poluídos por mercúrio, com os rios transformados em correntes de lama, resultado da intensa exploração garimpeira que ocorreu nos últimos anos e que se encontra atualmente em declínio. E o resultado, tanto para a natureza quanto para a saúde da população, é preocupante. Em pesquisa realizada em 1999 por equipe de especialistas da Universidade de Brasília, foram registrados índices alarmantes de contaminação por mercúrio em um número significativo de indígenas Mundurukú.
Apesar do declínio das atividades garimpeiras no Tapajós, a região passou a atrair o interesse das empresas mineradoras, e atualmente existem no DNPM dezenas de solicitações de alvará de pesquisa que incidem sob o território indígena. Recentemente, após um movimento de reivindicação dos Mundurukú junto à FUNAI e ao Ministério Público, foi feita a desintrusão do Garimpo de Nova Vida, que se encontrava dentro da terra demarcada, nas proximidades do limite leste. Entretanto os perigos de retorno dos garimpeiros não cessaram, apesar de os Mundurukú terem adotados providências para a fiscalização da área.
Há cerca de quatro anos, surgiu uma nova ameaça para a vida dos Mundurukú. Como sabemos, os gigantescos projetos de hidrelétricas da década de 90 foram, em alguns casos, substituídos pelas hidrovias, anunciadas como a solução dos problemas de escoamento dos grandes produtores de soja. Na região do Tapajós, inicialmente pensou-se em planejar uma Rodohidrovia, que pretendia atravessar a Terra Indígena Mundurukú, com a construção de uma estrada de mais de 400 km, ligando Alta Floresta, no Mato Grosso, a Jacareacanga, no Pará. Posteriormente, a proposta foi transformada no Projeto da Hidrovia Tapajós - Teles Pires, com proposta de obras a serem realizadas do trecho encachoeirado conhecido como Rasteira até as cachoeiras do Pimental, próximo a Itaituba.
A falta de transparência na proposta é desrespeitosa para a população indígena e comunidades ribeirinhas, e representa uma ameaça em uma região em que o regime das águas é essencial para a reprodução da floresta e de todo ecossistema, sendo que os rios formadores do Tapajós – e que cortam a terra indígena – transformam-se em igapós gigantescos na estação das cheias. Em todos os aspectos, o projeto da hidrovia do Tapajós se assemelha aos empreendimentos do passado, estando articulado a projetos de colonização, a exemplo dos que deram origem, nas décadas de 70/80, às cidades do norte do Mato Grosso, como Sinop, Guarantã e Alta Floresta. Foi elaborado um projeto, mesmo sendo ilegal, de colonização, em que se delimitam lotes na região do rio São Benedito, sobrepostos em território identificado como pertencente ao povo Kayabí, trabalho realizado pelo Grupo de Trabalho de Identificação e Delimitação desta terra indígena, concluído em 1993. Para proteção da Terra Indígena Mundurukú, cujos trabalhos de demarcação foram executados em 2001, é fundamental a realização dos trabalhos de demarcação e fiscalização da vizinha Terra Kayabí/Gleba Sul. No momento, devido à mobilização de setores da sociedade civil e dos Mundurukú, o Projeto da hidrovia Tapajós - Teles Pires encontra-se embargado, por meio de uma liminar do Ministério Público Federal.
Os Mundurukú viveram a experiência da primeira Assembléia Indígena realizada no Brasil, que aconteceu em 1975, na aldeia Missão Cururú, com a presença de lideranças de várias etnias. As primeiras Assembléias realizadas por iniciativa das lideranças, com a participação de caciques e representantes da maioria das aldeias Mundurukú, ocorreram nos anos de 1985/86, e tinham como tema principal a questão da demarcação da terra, alem da discussão dos problemas relacionados à educação, saúde, meio ambiente e projetos voltados para a economia das comunidades. Mas só passaram a ser numeradas a partir da realização da I Assembléia Geral do Povo Mundurukú, em 1989. Com passar do tempo, a organização foi amadurecendo, a participação foi crescendo, e as discussões se ampliaram. Neste ano de 2002, foi realizada a XIV Assembléia Geral, a primeira após a conclusão dos trabalhos de demarcação da terra, pela qual muitas lideranças, junto com suas comunidades, lutaram.
Como meio de organização formal, os Mundurukú do alto rio Tapajós criaram, em 1991, a Associação Indígena Pusuru, por iniciativa de algumas lideranças, e com os objetivos de organizar as reivindicações voltadas para a demarcação da terra e desenvolver ações referentes à defesa do meio ambiente, educação, saúde e outros problemas enfrentados pela população. No mesmo ano, as lideranças entenderam que era necessária uma forma de organização que exercesse um papel político mais direto, orientando as discussões, e que possibilitasse a participação ampla de representantes de várias comunidades Mundurukú. Surgiu, então, o Conselho Indígena Mundurukú do Alto Tapajós – CIMAT.
As duas entidades atuam juntas e vêem realizando várias ações importantes para o fortalecimento do povo Mundurukú. Apresentaram, em 1991, um projeto que foi aprovado pelo PPTAL, quando foi implantada a rede de radiofonia, coordenada pela Pusuru e o CIMAT, estabelecendo a comunicação entre 10 aldeias localizadas em pontos importantes para a proteção do território e para a articulação das atividades, fato que contribuiu para melhorar a comunicação e o intercâmbio, consolidando a organização. Em 2001, as entidades executaram, com o apoio do PPTAL, o Projeto de Acompanhamento da Demarcação da Terra Indígena Mundurukú, e este ano está em fase de realização o Projeto de Fiscalização da referida terra indígena. A Pusuru e o CIMAT coordenam as atividades de mobilização dos Mundurukú, encaminham reivindicações de direitos e são interlocutoras nas relações com as instituições públicas. Para atender a esses objetivos, foi instalada uma sede em Jacareacanga.
Um outro aspecto que merece registro no processo de organização dos Mundurukú é o interesse que eles sempre tiveram pela melhoria da educação escolar. Muitas das escolas existentes surgiram por iniciativa das comunidades, sendo que vários professores indígenas atuaram durante anos como voluntários, contribuindo para a alfabetização e o sentimento de compromisso de muitos jovens que se encontram hoje participando das ações de interesse comunitário. Os trabalhos de capacitação dos primeiros professores tiveram seus primórdios a partir da metade da década de 70, com iniciativas do SIL e da Missão São Francisco. Depois de longo intervalo, foram retomados, com novo formato e novos princípios, nos fins da década de 80, alguns por iniciativa do CIMI e, às vezes, da FUNAI.
Mas a vontade de aprender e se aprimorar ainda não terminou, de forma que, atualmente, encontra-se em realização o Projeto de Formação de Magistério Indígena Mundurukú, sob a coordenação da FUNAI e em parceria com a Seção de Educação Indígena da SEDUC – PA, contando também com o apoio das entidades Mundurukú e da Missão Batista e Missão Cururu. O curso, de caráter modular, iniciado em 1998, está em processo de reconhecimento pelo Conselho Estadual de Educação/Pará, estando prevista a formatura da primeira turma, com 40 alunos/professores, no final deste ano.
Os Mundurukú que estão nas outras áreas também têm trilhado caminhos semelhantes na luta por seus direitos e na consolidação de suas organizações. Em Praia do Índio e Mangue, terras pequenas localizadas na cidade de Itaituba, existe uma associação e um projeto de revitalização cultural, iniciado pela Escola Indígena, mantidos pela comunidade, com o apoio de uma organização não-governamental e da FUNAI. Na Terra Indígena Coatá-Laranjal, no Amazonas, a demarcação também foi acompanhada pela Associação dos Mundurukú, por meio de projeto financiado pelo PPTAL; atualmente, existe na comunidade um projeto de produção de melaço de cana e rapadura, financiado pela FUNAI por meio da Administração Regional de Manaus. Nos últimos anos, os Mundurukú destas diferentes áreas têm procurado formas de aproximarem-se e manter contatos mais regulares, com o objetivo de trocar experiências e partilhar aspectos da cultura. Este é um desejo que, apesar das dificuldades, caso realizado, poderá gerar conhecimentos e alternativas inéditas para o caminhar desse povo e para que possa melhor enfrentar os novos desafios que a ele se apresentam.
Bibliografia:
- LEOPOLDI, José Sávio. O contato do índio brasileiro: o caso Munduruku. Tese de Mestrado. Universidade de Oxford, 1979, (manuscrito traduzido à disposição no CIMI-Norte).
- MURPHY, Robert & Yolanda. As condições atuais dos Munduruku. Belém: Inst. de Antrop. e Etnologia do Pará n.º 8, 1954.
- RAMOS, André Raimundo Ferreira. Entre a Cruz e a Riscadeira: Catequese e Empresa Extrativista entre os Mundurukú (1910-1957). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História das Sociedades Agrárias. FCHF, Universidade de Federal de Goiás, Goiânia: 2000.
- MENENDEZ, Miguel. A Área Madeira - Tapajós. “Situação de contato e relações entre colonizador indígenas”. In: CUNHA, Manuela Carneiro (org.). História dos Índios do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
- Brasil Indígena Nº 9. Ano II – Março/ Abril – 2002. Fundação Nacional do índio- FUNAI. Brasília - DF
Ministério da Fazenda http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJA63EBC0EITEMID60FC4333F60C4EAAA1E429ED4C2D9F8DPTBRIE.htm#EZTPageTop
Um comentário:
Boa Noite Cláudia,
Passei pelo seu Blog e o achei muito, mas muito interessante e cultural. Durante um tempo participei das sessões espíritas de Umbanda e depois por uma série de motivos pessoais parei.Eu tinha uma aproximação muito grande com os cablocos. Teve uma situação que muito me amargurou, foi qdo queimaram o cacique em Brasilia e como protesto tatuei o rosto de um indio no ombro. Sou ambientalista e vi no seu blog as orientações sobre as oferendas ao meio ambiente, creia-me a natureza agradece sua atenção. Tenho tb um blog: novaotica.blogspot.com, se vc não se importar irei adicionar seu blog na minha lista.
Grande abraço e muita luz.
Tânia Ávila
Postar um comentário