O processo de colonização no centro-oeste e sul da Amazônia passou ao largo da região banhada pelos rios Aripuanã, Roosevelt e Ji-Paraná, tributários da bacia do rio Madeira. Apenas a partir da segunda metade do século XIX, com o início o “ciclo da borracha”, que atraiu peruanos e cearenses para a exploração dos seringais nativos e assim os afluentes do Madeira (rios Marmelos, Manicoré, o baixo Aripuanã e Ji-Paraná), passaram a ser percorridos e ocupados economicamente.
No começo do século XX, a criação da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (a “Comissão Rondon”) ofereceu um impulso adicional à ocupação sistemática e permanente do noroeste do então imenso Estado de Mato Grosso. Além de estender o telégrafo, abrir estradas estratégicas, executar trabalhos geográficos, botânicos e mineralógicos, a Comissão ainda encarregou-se de “pacificar” as populações indígenas em seu percurso.
Entre outros empreendimentos, a Comissão organizou a Expedição Roosevelt-Rondon, que conjugava o interesse do ex-presidente norteamericano Theodore Roosevelt em obter exemplares da fauna sulamericana para o American Museum of Natural History e a intenção do governo brasileiro em prestar-lhe uma homenagem. O então coronel Cândido Rondon planejou um itinerário pelos sertões de Mato Grosso que finalizaria com o levantamento do “rio da Dúvida”, logo rebatizado de rio Roosevelt, cujo curso e confluência eram então desconhecidos. A Expedição, que cruzou o território ocupado pelos Zoró e Cinta-Larga, entre outros, encontrou em seu percurso inúmeros sinais da proximidade dos índios.
Nos anos seguintes, somente notícias esparsas e fragmentadas sobre os grupos indígenas da região vão aparecer, relatando conflitos com as frentes pioneiras.
Na década de 60 deu-se um novo ritmo à migração e à ocupação econômica da Amazônia meridional: de início, a construção da estrada BR-364, ligando as capitais Cuiabá e Porto Velho; em seguida, o assédio de garimpeiros e empresas de mineração às reservas de cassiterita, diamante e ouro; e, por fim, a convergência de interesses governamentais e privados, deslanchando o processo de colonização e exploração agropecuária. Em particular, o estado de Mato Grosso promoveu a alienação das terras do município de Aripuanã, sem levar em conta a presença de índios, seringueiros e posseiros, sequer a sobreposição de títulos imobiliários. A pressão sobre os territórios indígenas levou o órgão de proteção aos índios, o combalido SPI (Serviço de Proteção aos Índios), logo substituído pela Funai, a organizar expedições de “pacificação” com o objetivo de neutralizar a resistência indígena aos invasores e, assim, confinar os Suruí, Cinta-Larga e Zoró em áreas reduzidas.
Os grupos locais zoró, então, remanesciam no triângulo formado pelos rios Roosevelt e Branco, embora incursões de seringueiros, caucheiros e garimpeiros tenham dizimado completamente algumas de suas aldeias. De um acampamento zoró atacado em 1963 sobreviveu apenas uma menina, raptada pelos seringueiros.
No setor oriental, ao longo do rio Roosevelt, os Zoró logo seriam forçados a ceder largas porções suas terras em favor das fazendas de gado que então iniciavam suas atividades. A leste, defrontavam-se com a fazenda Muiraquitã, a oeste, com os peões da fazenda Castanhal e a sudeste, com os Suruí, empurrados em direção ao norte por posseiros que avançavam sobre suas terras.
Um levantamento aéreo realizado em 1967 por Horst Stute, da Missão Novas Tribos do Brasil, localizou os agrupamentos mais significativos dos Suruí, Cinta- Larga e Zoró. As operações de “pacificação” iniciadas em 1966, contudo, mostraram-se descoordenadas e insuficientes em meio à invasão generalizada do território indígena por garimpeiros e colonos. Os desacertos, as omissões e a conivência do órgão indigenista foram desastrosos. Os Zoró se aproximaram das frentes regionais em 1976, avistando-se com “peões” da fazenda Castanhal às margens do rio Branco, afluente do Roosevelt. Apenas em outubro do ano seguinte uma expedição da Funai, sob o comando dos sertanistas Apoena Meirelles e José do Carmo Santana (“Zé Bell”), foi ao seu encontro na sede da fazenda.
Primeiras tentativas
As primeiras tentativas de contato, com os que então se supunha serem “índios suruí” do alto rio Branco (na verdade, os atuais Zoró), partiram do encarregado do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) do posto Igarapé Lourdes, Constantino Marques de Almeida, com a cooperação dos Gavião – em fevereiro de 1967 aqueles haviam realizado uma visita à aldeia gavião.
Em 1973, guerreiros zoró atacaram uma família suruí que pescava a oito quilômetros do posto Sete de Setembro (Puttkamer, Diários de Campo II, 1972-1976). Algumas de suas aldeias foram avistadas pelo sertanista Apoena Meirelles em fins de 1974, a setenta quilômetros do posto Sete de Setembro. O sertanista estimou entre quinhentas a oitocentas pessoas a sua população, distribuída em, ao menos, oito aldeias.
Quando reassumiu a direção do Parque do Aripuanã em 1976, Meirelles realizou um novo sobrevôo das aldeias dos índios conhecidos como “cabeças-secas” e considerados “ainda arredios”, situadas entre as cabeceiras do igarapé Tiroteio com a margem direita do Rio Branco. Disto resultou uma primeira proposta de interdição das terras ocupadas pelos Zoró e um plano para a sua “atração”.
Em agosto do mesmo ano, o sertanista José do Carmo Santana (“Zé Bell”) acompanhou o fotógrafo Jesco von Puttkamer, da National Geographic, em mais um sobrevôo do território zoró. Seguindo o rio Tiroteio, avistaram então as primeiras aldeias:
“Havia duas clareiras de duas novas aldeias com duas a três malocas no meio de uma área desmatada há pouco. Porém as pessoas correram, escondendo-se do avião. Estes índios são hostis, tendo matado recentemente vários homens brancos. Uns poucos minutos depois, nós vimos duas outras aldeias com malocas mais velhas – já nas cabeceiras do rio Branco. Os índios aqui são hostis também, e tentaram esconder-se do avião [em suas casas]. Apenas os cachorros permaneceram do lado de fora.
Em torno de uma das casas, nós pudemos ver centenas de taquaras de flecha, secando no sol. Por que estão fazendo assim tantas flechas? Para guerra, obviamente. Porém eles irão combater intrusos brancos, ou voltar de novo e atacar seus parentes no posto Sete de Setembro?
Nós sabíamos que mais ao norte encontraríamos outras aldeias, porém estava tão enevoado e cheio de fumaça [de queimadas nas fazendas ao sul e a oeste das terras dos Zoró]”. (Puttkamer, Diários de Campo II, 1972-1976).
A Frente de Atração
Às margens do rio Branco, afluente do Roosevelt, os Zoró confraternizaram-se com alguns peões da fazenda Castanhal, em janeiro de 1977. Mas só em junho um novo “plano de atração” seria encaminhado por Apoena Meirelles, propondo a interdição da área onde habitam os Zoró, a alocação de recursos para estruturar a Frente de Atração e a instalação de um posto na região do rio Quatorze de Abril.
A Funai preparava uma expedição para o mês de março, sob a chefia do sertanista José do Carmo Santana, ex-diretor do Parque do Aripuanã, para contatar cerca de 800 índios zorós ou “cabeças-secas”, e assim evitar que se chocassem com fazendeiros e seringalistas que avançavam, a cada dia, em direção às suas terras nas cabeceiras dos rios Branco e 14 de Abril. Todavia, a partida da expedição, adiada seguidas vezes, deu-se apenas em outubro de 1977, após um novo sobrevôo da área. As atividades da expedição da Funai e os primeiros contatos amistosos com os Zoró foram descritas pelo jornalista Cesarion Praxedes em duas longas reportagens, na revista Manchete e na Revista Geográfica Universal (veja quadro "Relato do contato").
Transcorridos apenas dois meses do encontro com a expedição da Funai, os Zoró já haviam contraído gripe e malária dos peões da fazenda Castanhal (estes, mais de trezentos trabalhando em derrubadas e na formação de pastagens), e muitos vieram a falecer nos meses seguintes aos primeiros contatos.
Em meados do ano seguinte, uma família zoró acampada nas proximidades da atual Barreira (a aldeia Zawã Kej Alakit) foi atacada por Suruí armados de espingarda. Morreram então dois homens, uma mulher, uma moça e uma criança. A tocaia aconteceu, segundo disseram os Suruí aos funcionários da Funai, num “ato de vingança contra os zorós que há dois anos mataram uma família inteira de suruís” (Estado de São Paulo, 1978a; Chapelle, 1978).
Temendo novos ataques, 185 Zoró deixaram a área interditada havia pouco , e reuniram-se aos Gavião na Área Igarapé Lourdes, a cento e cinqüenta quilômetros a oeste e trinta dias de caminhada (Moore, 1981). Em outubro, contudo, a maioria deles retornou ao seu território original.
Os Zoró foram reunidos pelos funcionários da Funai numa única aldeia, quinze quilômetros à leste do rio Branco, onde estava o posto da Frente de Atração. Ali estiveram até maio de 1980, quando novamente a maior parte buscou refúgio na Área Igarapé Lourdes. Desta feita, devido ao abuso de mulheres e maus tratos por funcionários da Funai lotados na Frente de Atração (Forseth & Lovøld, 1984; Cloutier, 1988; Gambini, 1983).
Apenas um pequeno grupo permaneceu na aldeia Bobyrej (a atual aldeia “Central”, onde está localizado o antigo posto da Funai). Durante essa segunda temporada com os Gavião, de cerca de um ano, os Zoró foram “convertidos” ao conjunto de crenças cristãs professadas pelos missionários das Novas Tribos do Brasil. Poucos meses depois, um sertanista da Funai conseguiu recambiar algumas famílias ao posto da Frente de Atração Zoró.
O novo encarregado da Frente, por sua vez, deu início a um desmedido programa de roças comunitárias, que exigia o engajamento diário de todos os homens da comunidade, desejando transformá-los em agricultores sedentários. Um regime impositivo de trabalho agrícola foi observado pelos antropólogos noruegueses Elizabetth Forseth e Lars Lovøld, quando ali estiveram em agosto de 1981. Notaram que a proibição da caça durante os dias úteis restringiu a distribuição de comida apenas aos trabalhadores, levando à redução da quantidade e do valor nutritivo da alimentação de mulheres e crianças.
Ainda mais danosos foram os efeitos colaterais da sedentarização imposta pela Funai. O posto onde se aglutinaram os Zoró estava no setor noroeste da área interditada, bem distante do eixo da estrada construída pelo Condomínio Lunardelli a sudeste. Sob a alegação de que tal porção da área seria oportunamente desinterditada, a direção da Funai autorizou sua construção, facilitando o acesso às fazendas dos grupos Ometto, Parizotto, Banco Meridional do Brasil, Agropecuária Central e Companhia Vale do Rio Roosevelt, situadas mais ao norte, entre os rios Roosevelt e Guariba. Em pouco tempo, a estrada do Condomínio Lunardelli tornou-se a principal via de penetração de invasores e grileiros, que assim devassaram uma vasta extensão da área indígena.
Invasão e conflitos
Em agosto de 1985, cada vez mais apreensivos em razão da invasão de seu território, quarenta guerreiros zoró, munidos apenas de arcos e flechas, fizeram uma expedição de advertência, e capturaram três invasores, detidos na aldeia por alguns dias – até então, os Zoró não suspeitavam que os invasores eram tão numerosos. As negociações para a liberação dos reféns foram concluídas com a promessa de retirada de todos os invasores da Área Indígena Zoró, concentrados no então “Núcleo Quatorze de Abril”.
Ainda em 1985, a Funai contratou os serviços do DSG – Departamento de Serviço Geográfico do Exército para a realização dos trabalhos de demarcação física da Área Indígena Zoró. O quadro de tensão e conflitos agravava-se, bem como a sua repercussão na imprensa nacional e internacional.
Num primeiro momento, os líderes zoró, à frente o zapijaj Pajo (“Paiô”), adotararam iniciativas pacíficas para a retomada de seu território, a exemplo das comitivas para Cuiabá e Brasília, quando falaram diretamente com as autoridades responsáveis (Gambini, 1987). Os invasores, entretanto, exigiam a exclusão de cento e vinte mil hectares da Área Indígena Zoró, já desmatados e ocupados com benfeitorias. Favorável ao pleito, o Governo do Estado de Mato Grosso criou o distrito “Paraíso da Serra” no interior da Área Indígena Zoró (Lei Estadual 5.112, de 9 de abril de 1987). À época, já residiam no núcleo urbano em formação mais de cem famílias, apoiadas por autoridades e políticos matogrossenses, a exemplo do deputado estadual Kazu Sano, do PMDB.
Nesse ínterim, a Área Indígena Zoró foi aprovada pelo Grupo de Trabalho Interministerial em 19 de fevereiro de 1987 e, em seguida, declarada de ocupação dos Zoró pelo Decreto n. 94.088, de 11 de março de 1987. Tais medidas, sem dúvida, resultaram de pressões internacionais sobre o governo brasileiro,
principalmente a manifestação do Banco Mundial, que então financiava o asfaltamento da rodovia Cuiabá–Porto Velho (BR-364) através do Programa Polonoroeste.
Contudo, os órgãos governamentais, especialmente a Funai, o Mirad – Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário e o Intermat – Instituto de Terras de Mato Grosso, tardaram a executar a necessária desintrusão da área indígena. O descaso propiciou a ação, em larga escala, de grileiros, e em 1988 já havia mais de quinhentas famílias de posseiros concentradas no distrito Paraíso da Serra. Os jornais noticiavam também a ação de madeireiras, que extraíam ilegalmente mogno e cerejeira das terras indígenas.
Em resposta à insistência dos Zoró, a Funai instalou uma barreira policial precária no limite sul da Área Indígena Zoró, para controlar o trânsito na estrada e coibir mais invasões e o saque de madeira. Cansados da espera por uma solução definitiva, todavia, alguns Zoró renderam-se às negociações diretas com os invasores de suas terras, recebendo para isso mercadorias, alguns remédios e muitas promessas.
O acordo com os posseiros, sobre o qual não havia consenso sequer entre os próprios Zoró, no entanto, trazia apreensão aos povos indígenas vizinhos, pois a invasão ameaçava se alastrar pelas Áreas Indígenas Roosevelt, Aripuanã e Sete de Setembro. Daí que, em outubro de 1988, centenas de guerreiros cinta-larga, suruí, gavião e arara reuniram-se em caravana para forçar madeireiros e posseiros a se
retirar das terras zoró. Quando retornavam, um pequeno grupo foi perseguido e emboscado por pistoleiros, alvejando pelas costas o ancião Yamner Suruí, de cerca de 68 anos. Duas semanas depois seu cadáver, completamente carbonizado, foi localizado à beira da estrada, a oito quilômetros de Paraíso da Serra. O inquérito policial indiciou apenas alguns dos pistoleiros, mas nenhum dos possíveis mandantes.
Por fim, o Decreto 265, de 29 de outubro de 1991, homologou a demarcação administrativa da Terra Indígena Zoró, com 355.789 hectares. Sua desocupação, porém, deu-se apenas em meados de 1992, quando os invasores foram reassentados nos projetos Lontra e Filinto Müller, no norte do município de Aripuanã. Mais uma vez, o posicionamento de agências multilaterais e, em particular, do Banco Mundial, que impôs a desintrusão da TI Zoró como condição para o Programa Prodeagro em elaboração, contribuiu decisivamente para solução de um impasse que se arrastava há quase dez anos.
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/zoro/2065
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