A conversão massiva ao evangelismo fundamentalista, sob a influência da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) e de igrejas batistas de Rondônia, levou os Zoró a abandonar, de maneira abrupta, quase todas as práticas xamânicas, as concepções cosmológicas e o rico corpus mitológico que compunham o modo de vida tradicional. Passados poucos anos dos contatos iniciais, até mesmo a investigação destes e de outros aspectos de suas tradições esbarrava na religião evangélica.
Cultos, rezas e curas espirituais são hoje ministrados quase diariamente por pastores indígenas, cujo treinamento e orientação encarregaram-se os missionários da MNTB, ora sediados em Ji-Paraná (RO).
As narrativas bíblicas, traduzidas e memorizadas na língua materna, são evocadas em sermões e solenidades públicas, bem como servem aos novos juízos morais e preenchem a conversação doméstica. Ápice do processo de transfiguração por que passa a cultura zoró, os batismos coletivos, por meio da imersão dos iniciandos em lagos ou rios, assinalam a substituição do demiurgo Gorá, o inventor do mundo, dos homens e dos bens culturais para os povos tupi-mondé, pelo Deus cristão professado pelos evangélicos batistas.
Diziam os antigos Zoró que Gorá, nos tempos míticos, ensejou o aparecimento dos diferentes povos que compõem a humanidade, tal como hoje se observa: os Suruí, Cinta-Larga, Arara, Gavião, Zoró e “brancos”, de maneira ordenada, escaparam através da abertura escavada por araras, papagaios e periquitos na “maloca de pedra”, uma formação rochosa entre as cabeceiras dos rios Roosevelt e Aripuanã, onde o próprio demiurgo, contrariado, os havia aprisionado (Løvold, 1987).
Além do nosso plano terrestre, cujas formas atuais os desejos e as atitudes de Gorá modelaram, os Zoró concebiam ainda um mundo aquático subterrâneo, perigoso, e um paraíso celeste, Gat Pi (“caminho do sol”), em tudo semelhante ao nosso mundo, mas mais belo e farto.
Espíritos, doenças e xamãs
Os espíritos aquáticos Gojanej (gojan designa o trovão como também o poraquê, ou peixe-elétrico), que habitam tanto o mundo subterrâneo quanto o celeste, são briguentos, especialmente quando embriagados de chicha de milho. Com seus auxiliares espirituais e animais, os Gojanej trazem uma constante ameaça ao bem-estar dos Panderej, “os humanos”, porque são capazes de roubar-lhes a “imagem” - o princípio vital ixo é uma parte intrínseca e imortal da pessoa, forma-se junto com o feto e reflete a personalidade do seu portador. A perda da consciência e as dificuldades respiratórias, que caracterizam as doenças avi, são os sintomas que indicam a perda do ixo (Brunelli, 1989).
Já os Gere Baj, seres invisíveis e maléficos, manifestam-se através de animais, como o mutum, o nambu e a ariranha, ou até mesmo de pajés. Seus ataques traiçoeiros provocam cefaléias repentinas e agudas, febres elevadas e diarréias incontroláveis, ou quaisquer sintomas persistentes que abatem a vítima em poucos dias. Existem ainda entidades que vivem no interior das serras, os Doka, que atacam órgãos específicos, trazendo incômodo e dores fortes. Na verdade, diziam os Zoró, todos os elementos ou aspectos naturais, assim as pedras, as árvores, os animais etc., são habitados por seres invisíveis e estes seres, às vezes, causam dores físicas localizadas, as doenças atika.
Outros males podem resultar de uma infração às regras alimentares, de um ato de feitiçaria ou de acidentes variados. De modo geral, no entanto, as doenças e seus cuidados, ao lado de suas causas mais imediatas, articulam-se a razões de uma ordem bem mais profunda. O que exigia, via de regra, a intervenção do wãwã, o pajé, cujas atividades terapêuticas eram indispensáveis para o pleno restabelecimento dos pacientes.
Os poderes do wãwã podiam levá-lo, periodicamente, a visitar a aldeia do demiurgo Gorá, que lhe oferecia grandes banquetes. Mas a função xamânica, no entanto, implicava também a interação e a “negociação” com seres perigosos que habitam as várias regiões do cosmos, a causa última das doenças humanas. Para isso, contavam com a ajuda de espíritos auxiliares, os Gere Bai amigos. O tratamento assumia diferentes feições, tendo como palco uma festa coletiva, para a qual eram convidados os moradores das aldeias vizinhas e, naturalmente, os seus pajés. As mulheres ofereciam chicha, em grandes porções, no decorrer de danças, cantos e música de clarinetas. Os pajés, a certa altura, encenavam a extração da doença do paciente, ou então uma expedição para reaver seu ixo etc.
Ao lado das funções especializadas do wãwã, homens e mulheres dispunham também de conhecimentos minuciosos sobre um inestimável conjunto de plantas medicinais, denominadas pawat, manipuladas tanto para fins profiláticos quanto curativos (Brunelli, 1989).
Conversão ao evangelismo
Logo que os primeiros 40 zoró chegaram à aldeia gavião, no ano de 1978, ali foram prontamente vestidos – como um “rito de passagem”, uma maneira de sinalizar a sua entrada no “mundo dos brancos”, nos termos da visão puritana enunciada pelos missionários de Novas Tribos do Brasil (MNTB). Os missionários da MNTB, com destaque para o casal alemão Horst e Annette Stute, que se instalou em 1966 no Igarapé Lourdes, estão vinculados estreitamente à Igreja Batista de Ji-Paraná (RO). Dedicam-se desde então ao estudo da língua indígena, à alfabetização, ao atendimento médico e, sobretudo, à tradução da bíblia e ao proselitismo religioso.
Entre os Gavião, porém, a conversão ao evangelismo não durou muito, a maioria abandonou a nova religião alguns anos depois e voltou a celebrar suas festas e cerimônias xamânicas (Cloutier, 1988). Mas quando os Zoró ali chegaram, os Stute puderam contar com a ajuda inestimável de dois pastores gavião para, de imediato, transmitir a “Palavra de Deus” aos recém-chegados. Ao lado destes “mediadores” entre a ideologia religiosa e as concepções ameríndias, outros fatores favoreceram a adesão entusiasmada dos Zoró: uma epidemia de coqueluche e outra de hepatite, que causaram cinco mortes. Os missionários ajudaram a enfrentar as epidemias, junto com os servidores da Funai: assim os Zoró descobriram assim, ao mesmo tempo, a eficácia da medicina ocidental e as preces cristãs de cura que lhes foram ensinadas pelos missionários.
A adesão coletiva ao evangelismo, após alguns meses, chegou a surpreender até mesmo os missionários. Alguns anos mais tarde, já reunidos em torno do posto da Frente de Atração, situado na antiga aldeia Bobyrej, a empolgação dos Zoró pela nova religião era de tal ordem que chegavam a celebrar até cinco cultos por semana. Em 1985 já contavam com cinco pastores zoró, quatro homens e uma mulher, que respondiam pela administração dos sacramentos (batismo, comunhão) e a organização dos cultos.
Já no início da década de 1980, impressionou o antropólogo Gambini (1983) o empobrecimento cultural generalizado. Um único ritual substituia os anteriores: o culto protestante, monótono e repetitivo - passagens do Gênese, louvores a Jesus Cristo, hinos em língua Zoró. Quatro anos depois, o mesmo antropólogo encontrou-os mais fervorosos ainda, sendo os cultos realizados diariamente - um pela manhã, apenas para as mulheres, e um à noite, para toda a comunidade. Liderados por um pastor zoró, os “crentes” compartilham relatos bíblicos, confissões públicas, testemunhos de fé, hinos, passes de mão e atendimento a doentes.
Impactados pela nova religião e pela convivência com Gavião cristianizados, portanto, os Zoró acataram inúmeras intromissões diretas em sua ordem social e em sua cultura: os pajés foram afastados de suas funções, a poligamia foi proibida, e as práticas cotidianas estão agora submetidas ao escrutínio de uma estreita noção de pecado, que os obriga ao uso de roupas, interdita rituais, festas, instrumentos musicais, adereços e, sobretudo, a ingestão de bebidas fermentadas.
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/zoro/2067
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